À pesca do vinho
As actividades de enoturismo estão cada vez mais criativas. Que o diga o produtor Brejinho da Costa, na Península de Setúbal, que desafia os enófilos a ir buscar o seu próprio vinho ao fundo do mar.
A ideia é bem original e aconteceu por acaso. Em 2016, o Porto de Sines acolheu uma regata de ‘tall ships’ que estava a dar a volta ao mundo. Prevendo que a chegada da dita regata seria um evento de grande destaque para a região, o então presidente da câmara de Sines lançou o repto ao produtor Brejinho da Costa de produzir um vinho especial, estagiado no fundo do mar, para poder oferecê-lo aos tripulantes. O desafio foi imediatamente aceite pelo produtor, que entretanto fez uma parceria com a Ecoalga, um centro de mergulho situado em Porto Côvo, para colocar e a retirar as garrafas do fundo do mar. O vinho estagiado ficou tão bom, e a iniciativa decorreu com tanto sucesso, que o produtor decidiu continuar a fazer as experiências do vinho no mar, nas costa entre Sines e Porto Côvo. Desde o início deste ano, lançou também, com a Ecoalga, uma nova actividade de enoturismo – mergulhar para ir buscar garrafas de vinho ao fundo do mar – uma iniciativa entretanto adiada pela pandemia mas agora já a funcionar em pleno.
Fundada em 2006 pelo empresário Manuel Barbeiro Costa, a Quinta do Brejinho da Costa tem cerca de 60 hectares e 30 de vinha. A forte luz solar e o clima atlântico proporcionam as condições perfeitas para que as vinhas se desenvolvam em condições privilegiadas. A gama de vinhos é muito completa e inclui um espumante, brancos rosés e tintos. Quem os quiser experimentar pode fazê-lo na adega, onde existe uma sala de provas, e passar pela loja posteriormente para se abastecer no regresso a casa.
Apesar de ser um pequeno produtor, o Brejinho sempre investiu em actividades enoturísticas que incluem, além das provas de vinho, a visita à adega e à destilaria (ainda a funcionar), a visita a ruínas romanas nas proximidades, passeios a cavalo, refeições por encomenda na sala de provas, piqueniques na praia, aulas de surf e agora, mais recentemente, o mergulho.
Mergulhar com quem sabe
Agrónomo de formação e mergulhador profissional, Joaquim Parrinha é também o fundador da Ecoalga, a empresa parceira do Brejinho da Costa nesta iniciativa. Há mais de 20 anos que Joaquim fundou em Porto Côvo este centro, que na época surgiu com o intuito de produzir biomassa através da exploração de macroalgas marinhas. A passagem para as actividades de animação turística surgiu naturalmente, de forma a dar a conhecer aos visitantes, mas também às gentes locais, a riqueza marinha existente na costa Alentejana entre Sines e Vila Nova de Mil Fontes. Investigador por natureza, está envolvido em inúmeros projectos ligados aos oceanos, que vão desde a biodiversidade, à arqueologia náutica e, mais recentemente, ao estágio de vinhos no mar. Tal como Luís Simões, o enólogo do Brejinho da Costa, Joaquim Parrinha acredita que as características aquáticas e marítimas têm as qualidades físico-químicas ideais para o vinho estagiar, sendo a Ecoalga responsável pela colocação, monitorização e retirada do vinho no mar.
Para quem nunca mergulhou com tanque de ar comprimido (vulgo botija de oxigénio para os desconhecedores de linguagem técnica) – a actividade de ‘pescar’ uma garrafa de vinho torna-se uma verdadeira aventura. Ninguém gosta de fazer figuras tristes, certo? Mas, se tivermos de as fazer, que seja em nome do vinho (ou seja, uma boa causa). Não percamos mais tempo, vamos a isso!
Antes de mergulhar, Joaquim Parrinha dá ainda em terra uma pequena aula teórica, essencial para entendermos onde vamos, o que vamos fazer, o funcionamento do equipamento e o significado dos sinais para comunicar debaixo de água. Nada de complicado. Entramos depois no barco em direção à ilha de Porto Côvo, pois é nas imediações do rochedo, entre 8 a 10 metros de profundidade, que se encontram as garrafas de vinho. Segundo Luís Simões, enólogo do Brejinho da Costa, não é só ali que o produtor tem vinhos a estagiar. Em Sines, por exemplo, estão também a fazer experiências com vinhos estagiados a 10, 20 e 30 metros. A profundidade; o tempo de estágio e a temperatura acabam por influenciar o vinho de diferentes formas, e até a vida marinha que se fixa no recipiente tornam cada garrafa única.
Chegada a hora de mergulhar, o melhor é não pensar muito. Seguramos a máscara na cara para não sair e mergulhamos sentados na borda do barco, de costas voltadas para o mar (o fato de borracha protege bastante do frio, não fazia ideia, valeu o tempo que demorou a vesti-lo!). É um pouco difícil estar dentro de água com tanto equipamento, atrapalha um pouco os movimentos, mas depois de estarmos habituados a coisa rola e até nos esquecemos disso. Ao meu lado, tenho um mergulhador profissional que me vai acompanhar na jornada e ainda me dá mais algumas instruções antes de irmos lá para baixo. Findos os preparativos, lá vamos nós, devagar, habituando o organismo à pressão!
A sensação de leveza, de estarmos totalmente ‘integrados’ na água, a confiança de respirar pelo tanque de ar comprimido, de descer em segurança e de observar a riqueza marinha ali existente, faz-me esquecer tudo. Estamos ali no paraíso e fico absorvida em pensamentos filosóficos, irritada pela falta consciencialização relativa à poluição dos mares. Como é possível estragar um planeta assim, tão bonito e rico, em mar e em terra? Acordo dos pensamentos e ainda tenho tempo de perseguir uns peixinhos que por ali passam em cardume antes de ir buscar a garrafa. Está quase. Vejo finalmente entre as algas e alguma areia que entretanto se levantou uma pesada caixa quadrada, rendilhada, que permite ver as garrafas no seu interior. Descobrimos o tesouro e tenho direito a trazer uma delas para cima. Um privilégio.
Apesar de estarmos a pouca profundidade, o regresso ao barco é igualmente feito devagar, devido à pressão. Quando chegamos à superfície com a garrafa da mão, sentimos que a missão está cumprida! Agora só falta provar!
Vinhos do mar, vinhos especiais
Por ser um vinho especial, o ‘Vinho do Atlântico’, como é denominado, na versão branca e tinta, não está à venda em muitos locais, apenas na loja do Brejinho da Costa, em algumas garrafeiras e restaurantes seleccionados, ou também pode ser adquirido para ofertas de eventos especiais. O preço individual da garrafa ultrapassa os 100€ e, quem quiser fazer a aventura de mergulhar, o preço passa para os 250€. Todos os tostões são merecidos para a primeira ou segunda hipótese.
Quem conhece Luís Simões sabe que é um enólogo discreto mas inquieto por novos desafios. Nascido numa família ligada à vinha e aos vinhos há mais de um século, a sua formação em Portugal e lá fora (Espanha, França e Itália) abriram-lhe novos horizontes, e alimentaram-lhe a curiosidade de fazer novas experiências. Na verdade, provar estes vinhos, tão únicos até na apresentação (os vinhos são vendidos apenas com uma pequena etiqueta no gargalo e com vestígios de vida marinha afixadas às garrafas, todas elas diferentes) é igualmente uma experiência muito interessante. As diferenças apontadas por Luís Simões são bem evidentes, principalmente se comparadas com a ‘testemunha’, uma garrafa do mesmo tinto, que não estagiou no mar.
Na verdade, tanto no tinto como no branco (tive a oportunidade de provar os dois vinhos e as respectivas ‘testemunhas’), sente-se que a evolução foi diferenciadora. A profundidade; o tempo de estágio e a temperatura do mar (situada entre os 12º e os 17º graus) cumpriram a sua função e revelaram vinhos bem diferentes em relação aos que ficaram em terra. Antes de ir para a água, o tinto - elaborado com Touriga Franca e Touriga Nacional - estagiou em barricas de carvalho francês durante 12 meses e só depois seguiu para o mar, onde ficou mais 12 meses a estagiar. Comparando com o mesmo tinto que ficou em terra, o vinho do mar parece mais jovem, mais estruturado, a sua complexidade é claramente valorizada pelo estágio na água. Além disso revela um excelente volume de boca e uma frescura mais viva. No aroma é frutado, floral, com ligeiras notas salinas, de cacau e também especiaria. Isso não invalida a qualidade do que ficou em terra, mas sem dúvida que é menos surpreendente, até no aroma.
Com o branco, acontece o mesmo, revelando-se o que esteve no mar mais complexo e vivo. Estagiou 8 meses barricas de carvalho francês e 12 meses em garrafa no fundo do mar. Elaborado com Arinto, Alvarinho e Encruzado, castas de eleição nacionais pautadas por uma excelente acidez, este branco revela um aroma herbáceo, vegetal, com salinidade evidente e ligeiras notas balsâmicas. Na boca é complexo, elegante e equilibrado, com madeira bem integrada e a tal salinidade que marca bem a diferença, mesmo em relação ao tinto.
Quem trabalha em vinhos deixa-se levar pelo entusiasmo de querer acompanhar um projecto destes, que merece toda a atenção. Quem não trabalha, tem uma boa oportunidade de se aventurar num programa diferente, e que contribui para que o vinho e o enoturismo português sejam cada vez mais valorizados.