A Revolução do Vinho Algarvio
Fundada em 1810 pelo Conde de Silves, o Morgado do Quintão pertence ainda à sua família. Membro da quarta geração, Filipe Caldas de Vasconcellos sentiu o apelo da terra e decidiu reavivar as tradições familiares na produção de vinho, assumindo a gestão da propriedade. Juntamente com a enóloga Joana Maçanita, desenhou um novo estilo de produtos que marcam a diferença na região, na qualidade e na originalidade.
Filipe Caldas de Vasconcellos não pára quieto. Formado em Marketing e Comunicação, dedicou a vida profissional a trabalhar nestas áreas, em Portugal e no estrangeiro, mas a morte da mãe mudou-lhe o rumo profissional. Sendo a quarta geração de uma família ligada ao vinho, com um legado familiar que incluía o Morgado do Quintão, uma propriedade com vinhas e oliveiras situada entre Silves, Monchique e Lagoa, no Algarve, só tinha duas saídas: ou vendia o património familiar ou alguém tomava conta do leme. Assim, em 2016, dos três irmãos, Filipe foi quem se chegou à frente para assumir a gestão do Morgado do Quintão, apoiado pela irmã, Teresa Vasconcellos que trata dos Recursos Humanos. Além das vinhas, a propriedade é rodeada por oliveiras milenares, figueiras, alfarrobeiras e ameixeiras, em regime biológico, e tem também uma horta e uma capoeira. Por último, existem ainda antigas casas caiadas de branco típicas do Algarve destinadas a receber hóspedes que procuram a tranquilidade oferecida pelo turismo rural.
As vinhas do Morgado do Quintão são das mais antigas do Algarve, e é lá que nascem vinhos premiados, criados em parceria com Joana Maçanita, que foi das primeiras enólogas do país a contribuir para o aumento de qualidade dos vinhos algarvios. Nestas terras existem 15 hectares de vinhas velhas (Negra Mole, Crato Branco, Castelão) e outros 8 hectares de videiras recentemente plantadas, em processo de certificação biológica. «Queremos criar vinhos com identidade, dar a conhecer a riqueza do terroir do Algarve, marcando a sua identidade. Lembro-me há uns anos, quando era mais novo, de dizer à minha mãe para arrancar estas vinhas e plantar castas internacionais, ou outras mais interessantes. Tive a felicidade da minha mãe não me ouvir!» diz Filipe Vasconcelos, bem-humorado. Hoje, o seu caminho passa pela recuperação e valorização das castas autóctones, mas também inovar, criando produtos diferenciadores.
Quando pegou no projecto, Filipe teve o cuidado de ouvir histórias da comunidade local e dos mais idosos sobre o perfil dos vinhos do passado. A pesquisa e estas memórias partilhadas foram o ponto de partida para o projecto. O Palhete e Clarete são um bom exemplo disso. «Eram os vinhos feitos na propriedade e consumidos em família, e por isso acreditamos que são alguns dos mais claros representantes do perfil algarvio do passado, e também do futuro dos vinhos desta região», afirma Filipe. «Aqui somos 100% pró-Algarve. Não é apenas uma afirmação vazia, é o nosso modo de vida e maneira de estar... não é algo que promovemos mas algo em que naturalmente acreditamos que devemos fazer com o legado que nos foi deixado: vinhos de qualidade que respeitam o terroir e as uvas, numa fiel interpretação da tradição da nossa região».
A mão de Joana
Para alcançar o seu objectivo, Filipe Vasconcellos escolheu uma das enólogas que mais tem trabalhado e revolucionado o Algarve, Joana Maçanita, que desde logo viu o potencial do projecto e ali se mantém desde o seu início. «As vinhas velhas são um tesouro a manter, mas em 2021 ainda aumentámos o número de algumas variedades já existentes, o Crato Branco e a Negra Mole; e plantámos outras como a Arinto, Perrum, Aragonês e tinta Miúda, tudo misturado. A ideia foi fazer a simulação de uma vinha antiga», revela Joana. Por outro lado, entre estas castas, foi ainda dado um foco especial à Negra Mole, uva da região que, bem implantada e vinificada, tem mostrado o seu real valor nos últimos anos. «Há algum tempo o professor Antero Martins, investigador do nosso património genético, fez um estudo que revelou que a Negra Mole é a única casta autóctone do Algarve e não viajou para lado nenhum. Percebemos então a genuinidade e o potencial desta casta e investimos nela, o que levou também outros produtores algarvios a fazer o mesmo. Isso é excelente pois, aliado à evolução global que houve no mundo dos vinhos, vai fazer com que os vinhos do Algarve mostrem cada vez mais a sua originalidade e genuinidade», remata a enóloga. De salientar ainda que este estudo, com informações relevantes para o projecto, diz ainda que a Negra Mole é a segunda casta mais antiga presente no Algarve (a primeira é a Crato Branco – a Síria ou Roupeiro, em outras regiões nacionais). Assim, não é de estranhar que para as suas onze referências, brancos e tintos tenham a presença constante destas duas castas.
Durante uma prova que se realizou debaixo da oliveira milenar do Morgado do Quintão, destacaram-se os já mencionados Palhete (o primeiro da colheita de 2022, de cor semelhante a um rosé, elaborado com Negra Mole e Crato Branco, um vinho descomplexado leve e fresco mas já com alguma presença), e o Clarete (da mesma colheita, um tinto suave e com boa frescura, nada pesado), ambos a surpreender pelo perfil e frescura. Ambos vinificados sem madeira.
O espumante Brut Nature também é uma aposta ganha, sendo igualmente diferenciadora numa região que não é tradicional na produção de espumantes. Elaborado pelo método tradicional champanhês, com a casta Negra Mole (é um blanc de noirs), a colheita de 2019 foi a provada e a primeira a ser lançada para o mercado. As uvas foram prensadas directamente, sem sulfuroso ou CO2, a fermentação foi espontânea e a temperatura controlada. A segunda fermentação em garrafa foi feita com leveduras livres. Resultou num espumante de aroma cítrico e a brioche, muito fresco e salino no paladar. Na mesa senda de originalidade surge um Branco de Tintas (o nome do vinho é mesmo este) da colheita de 2021, mais uma vez com a Negra Mole a dar cartas, desta vez fermentada em madeira neutra, e com bâtonnage. Um branco já mais sério, seco, com notas vegetais e com melhor alcance de boca. Outro produto interessante é ainda o Branco Especial, da colheita de 2018, da casta Crato Branco, este sem madeira mas também com boa profundidade e frescura de boca.
Por último, para responder a uma tendência de mercado, os vinhos de ânfora branco e tinto também surpreendem, ambos da colheita de 2021. O primeiro com crato Branco estagiado em talha por seis meses (resultou num vinho de cor amarela carregada, com notas minerais, fruta branca madura e paladar salino e crocante); e o tinto de Negra Mole e Castelão, elaborado com alguns cachos inteiros e outros desengaçados, colocados directamente na talha. A fermentação foi espontânea, estática, e a cuvaison de 4 meses, seguindo-se a prensagem, e sem filtração (resultou num tinto de cor ruby, pura e limpa, com corpo estruturado e terroso, boa acidez e final profundo.
Vinhos que vale a pena conhecer e que perduram na memória.