Caves Saint Martin – A Pérola do Mosel
Durante a estadia no Luxemburgo para participar no Concours Mondial de Bruxelles, dei um salto às Caves Saint Martin, em Remich. Entretanto adquiridas maioritariamente pela família Gales na década de 80, estas caves são uma referência na produção de vinhos localizada nas margens do rio Mosel.
O tempo livre escasseia. Mas, aproveitando a boleia de um amigo holandês que ia visitar as Caves de Saint Martin, não hesitei. Estas caves são uma referência na produção de vinhos tranquilos e espumantes no Luxemburgo. A ideia era visitar o espaço, provar dois ou três vinhos e sair dali para ainda ir jantar com os restantes colegas e provadores do Concours Mondial de Bruxelles (CMB). Puro engano. Era o que ia acontecer caso não tivéssemos sido seduzidos pela simpatia de Marc Gales, um gentleman a receber e um excelente produtor de vinhos, representante da terceira geração na empresa.
A origem das Caves Gales remonta ao dia 20 de Abril de 1916, altura em que Nicolas Gales, filho de um enólogo, lançou as bases de uma empresa que acabou por se tornar num dos principais produtores de vinho em Bech-Kleinmacher, nas margens do Mosel. No rescaldo da Segunda Guerra Mundial, os seus dois filhos Georges e Jules Gales, assim como a sua filha mais nova, Betty Gales, vieram apoiar o pai durante esse período de reconstrução económica. Uma época complicada vencida à conta da força e do carácter desta família produtora de vinhos.
Ao longo dos anos, nunca houve uma quebra de sucessão mas sim a presença de gerações que se uniram sempre em benefício da empresa, combinando experiência e aprendizagem no seu desejo imutável de assegurar a sustentabilidade das tradições familiares. Com base nesse legado, a terceira geração representada por Marc Gales entrou na empresa no início dos anos 80 para expandir o negócio. O grande passo foi dado em 1985, através da aquisição maioritária das Caves St Martin, em Remich, o que lhes permitiu alargar o portfolio da empresa. Em 2002, outro passo importante foi dado com a inauguração de uma nova unidade, destinada à produção de crémants luxemburgueses, em Ellange Gare. A quarta geração, representada pelos seus filhos Isabelle e Georges Gales trabalham hoje ao lado do pai Marc Gales, actualmente o presidente da empresa, para consolidar o trabalho realizado pelas gerações anteriores e para preparar a sociedade para os desafios do futuro.
Feitas as apresentações, viramos agora o foco para as caves Saint Martin. Fundadas em 1919, em Remich, é também uma adega de referência na região, tendo sido os primeiros a promover a venda de seus vinhos através de actividades de enoturismo na propriedade. As suas barricas, garrafas e tanques de inox encontram-se na semi-escuridão das passagens subterrâneas que foram laboriosamente escavadas nos penhascos de calcário das margens do Mosel. No Luxemburgo, os adeptos do método tradicional de produção de vinho espumante em Champagne terão dificuldade em encontrar um lugar mais interessante para aprender os detalhes do processo se não forem às caves Saint Martin. É, por isso, uma visita obrigatória. Vale a pena conhecer mas recomenda-se aos visitantes que levem agasalho, porque os túneis mantêm uma temperatura constante de 12 graus ao longo de todo o seu quilómetro de extensão. A visita termina agradavelmente com uma degustação de crémants e outros vinhos da empresa.
Os vinhos das Caves Gales / Saint Martin
Ter provado com Marc Gales foi um privilégio. Porque, além da sua companhia, provámos não os tais dois ou três vinhos, mas sim oito! Três crémant (espumantes), quatro vinhos brancos e um colheita tardia. Isto porque, cada vez que Marc era questionado sobre os vinhos que trazia para a mesa, os seus olhos curiosos revelavam que precisava de mostrar ainda mais para explicar a realidade e diversidade da empresa. Sempre com aquela paixão de quem se dedica ao vinho e a vontade de transmitir os seus conhecimentos. Cada vez que Marc se levantava, e eu julgava que a prova tinha terminado, mais vinhos ele trazia. Momentos que passaram num ápice. Não é de estranhar: quando a conversa é boa e os vinhos também, o tempo passa depressa.
Dos vinhos provados destacou-se o Cremant G by Gales. Trata-se de um excelente espumante, com vinhos base da colheita de 2013, fermentados em pequenas cubas de inox com elevada percentagem de vinhos de reserva, vinificados em barricas e envelhecidos em garrafa com borras sob pressão, durante sete anos. De bolha fina e persistente, tem um aroma intenso e no paladar uma estrutura expressiva. É fresco e elegante, com final delicado mas persistente. Outro cremant que gostei foi o Gales Heritage rosé, elaborado 100% com a casta Pinot Noir. No aroma é muito delicado, com notas frutadas, perfil que também assume no paladar elegante e com boa persistência. Mesmo o seu ‘irmão’ Gales Heritage, na versão branco, apresenta um grande equilíbrio e delicadeza, sendo todos eles vinhos de excelente relação qualidade preço. Estes crémants são provenientes das melhores encostas em torno da cidade de Remich. A sua filosofia traduz-se no respeito pelo solo, pela vinha e pelas suas uvas. Os baixos rendimentos das videiras revelam a complexidade dos aromas de cada casta.
A prova continuou ainda com os vinhos brancos Gales Auxerrois e Gales Pinot Gris, ambos Grand Premier Cru, da colheita de 2019. Tanto a Auxerrois como a Pinot Gris são uvas provenientes da Alsácia (França), mas também são plantadas em outros países, incluindo o Luxemburgo, onde encontramos frequentemente vinhos produzidos com estas castas. Embora ambos mostrassem grande equilíbrio, gostei muito do Auxerrois. Após desengaço parcial, foi fermentado a uma temperatura controlada de 17°C e envelhecido em depósitos de inox de 31 hectolitros. Um vinho frutado onde se destaca o aroma a ameixa branca e notas de especiaria. No paladar revela o carácter da casta, fruta equilibrada com alguma mineralidade, elegância e frescura.
Outros dois vinhos brancos chegaram à mesa, desta vez da linha Domaine & Tradition, elaborados com as castas Pinot Blanc (2018) e Riesling (2019). As uvas do Pinot Blanc foram apanhadas à mão e desengaçadas parcialmente, tendo fermentado à temperatura controlada de 16 ° C. Estagiou depois parcialmente em pequenas cubas de inox e barricas de carvalho. Um vinho com aroma a fruta madura e algum fruto seco, frutado e floral no paladar, madeira bem integrada e bom final de boca. Já o seu companheiro Riesling teve o mesmo tipo de vinificação, excepto o estágio em madeira. Estagiou em pequenas cubas de inox. Frutado e mineral no paladar, continuou com o mesmo perfil na prova, mas com uma acidez viva e impressionante. Um vinho que pode ser apreciado agora com a comida certa, mas que só ganhará se for guardado e consumido daqui a alguns anos. Quem é apreciador de Riesling envelhecidos sabe do que estou a falar. A prova de vinho terminou ainda com uma surpresa, um Colheita Tardia Gales Gewürztraminer 2018, que sobressaiu pela originalidade mas sobretudo pelo equilíbrio de doçura e acidez. Uma prova que terminou em beleza, não só pelos vinhos que provámos mas também pela apresentação privilegiada que tivemos.
História resumida dos vinhos do Luxemburgo
A viticultura junto ao rio Mosel tem uma longa tradição. No ano 370 D.C. há registos romanos que descrevem os terrenos mais altos nas encostas das margens do Mosel como os melhores para a vinha, enquanto os vales dos rios eram utilizados para o plantio de outros produtos agrícolas. Na Idade Média, os monges continuaram a expandir a cultura da viticultura. Mais tarde, com o rigoroso Inverno de 1709, o plantio de vinhas desceu drasticamente. Apenas as vinhas situadas nas planícies fluviais mais amenas foram preservadas.
Já no século 20, outros problemas surgiram. A destruição das vinhas pela filoxera, as duas guerras mundiais e as convulsões do mercado obrigaram os produtores a adaptar-se às circunstâncias. Isto conduziu a uma mudança fundamental na gama de variedades, nos canais de comercialização e no conceito de qualidade. Finalmente, em meados dos anos setenta, deu-se uma revolução vitivinícola significativa. As tradicionais barricas e toneis de madeira deram lugar nas adegas a modernos tanques de aço inoxidável para dar aos vinhos maior frescura. O aconselhamento e a formação tornaram-se cada vez mais profissionais, o que provocou um grande impacto no estilo de vinhos produzidos. Novas técnicas de vinificação serviram também para o surgimento de novos vinhos, com diferentes castas. Como consequência, surgiram novos vinhos de diversos estilos, como o Crémant de Luxembourg.
Actualmente, a região vitivinícola do Luxemburgo estende-se por 42 quilómetros entre as aldeias de Schengen e Wasserbillig, nas margens do rio Mosel, que faz fronteira com a Alemanha. As vinhas situam-se nas encostas, algumas delas ingremes e acidentadas, a uma altura entre os 150 e os 250 metros acima do nível do mar. Embora também se produzam vinhos tintos, o Luxemburgo é mais conhecido pela produção de vinhos brancos e espumantes de boa qualidade. E também existem alguns vinhos especiais mais recentes, como o Vendange tardive (colheita tardia, elaborado com uvas maduras, a maioria com botrytis), Vin de paille (vinho de palha, elaborado com uvas secas em esteiras de palha por cerca de dois meses) ou o Vin de glace (vinho de gelo, elaborado com uvas naturalmente congeladas), cuja produção foi aprovada desde Janeiro de 2001.
Existe assim uma grande variedade de produtos. Vinhos frescos, elegantes e minerais são produzidos a partir das variedades de uvas Elbling, Pinot Blanc e Riesling. Vinhos redondos, aromáticos, complexos e encorpados são produzidos a partir das castas Rivaner, Auxerrois e Pinot Gris.
A Denominação de Origem no Luxemburgo
A Denominação ‘AOP - Moselle Luxembourgeoise’ certifica a qualidade baseada na origem geográfica do produto. Para utilizar esta denominação a área geográfica tem de estar indicada com precisão, regras que têm de ser seguidas para definir tanto o padrão de qualidade, como o rendimento por hectare. Os seus vinhos são:
Lieu-Dit (Vinhos de Terroir) - Estes vinhos são provenientes das melhores vinhas do Mosel do Luxemburgo, delimitadas com precisão. Aqui a qualidade de um vinho é determinada de acordo com o terroir, a origem. A vinha, os baixos rendimentos, a apanha seletiva e o cultivo natural são apenas alguns dos critérios para a destacada qualidade destes vinhos.
Coteaux de (Vinhos premium típicos) - Os Coteaux são vinhos clássicos do Mosel do Luxemburgo, que utilizam castas típicas região. Esses vinhos premium são provenientes de vinhas de alta qualidade nos cantões de Grevenmacher ou Remich. Eles representam dois tipos diferentes de solo: calcário concha (cantão Grevenmacher), e Keuper com marga argilosa (cantão Remich). Apenas uvas colhidas à mão, baixos rendimentos e processamento cuidadoso tornam os vinhos de origem uma experiência de sabor.
Côtes de (Vinhos harmoniosos de entrada) - São harmoniosos vinhos de entrada de alto nível. Vinhos frutados e leves para uma apreciação diária descomplicada. O limite de rendimento para todas as variedades de uvas é de no máximo 100 hectolitros por hectare; em Elbling e Rivaner é de 115 hectolitros por hectare.
Crémant de Luxembourg (Espumantes de qualidade) - O Crémant de Luxembourg é um vinho espumante de qualidade ao mais alto nível. Desde 1991, a denominação ‘Crémant’ está autorizada a ser utilizada para os vinhos espumantes de qualidade luxemburgueses, desde que sejam cumpridas as condições legalmente previstas. Graças ao espírito de inovação, consciência da tradição e criatividade, foi criado em duas décadas um produto que inspira até os conhecedores mais exigentes. A base do Crémant são uvas saudáveis, aromáticas e com uma acidez refrescante, favorecidas pela localização geográfica da região vinícola de Luxemburgo. A escolha da casta, a composição do cuvée e o tempo de armazenamento resultam em produtos únicos que fazem do Crémant de Luxembourg uma experiência de sabor especial.
Apesar da sua alta qualidade, uma das razões para a falta de visibilidade do país em termos vínicos é simplesmente porque os seus habitantes, uma maioria de população desafogada, consomem a maior parte da produção de qualidade.