Escanções portuguesas – Vinho é com elas
Ser escanção em Portugal não é fácil. Ser escanção mulher, muito menos. Mas a verdade é que as escanções portuguesas estão a dar cartas. São profissionais, inteligentes, bonitas. Sabem dar a volta aos obstáculos e destacam-se nos seus postos de trabalho. Este artigo é dedicado a elas. Com mais ou menos experiência, a trabalhar para outros ou por conta própria, elas mostram o que valem e dão o exemplo a quem se entusiasmar a seguir a mesma profissão.
Numa época em que ser escanção está na moda, há cada vez mais jovens a optar por esta profissão. Numa maioria de rapazes que tiram o curso de escanção nas escolas de hotelaria, já começam a aparecer raparigas que se começam também a interessar por esta área. E, quem já está lançado no mercado, sejam homens ou mulheres, começa a entusiasmar-se com o movimento que está a surgir e a ganhar força ao redor dos escanções. Mas será que as mulheres têm a mesma competência que os homens? E, acima de tudo, as mesmas oportunidades?
As nossas escanções (ver caixas) afirmam que as mulheres são tão competentes como os homens, na maioria das vezes, até mais. «Têm uma sensibilidade mais apurada, fazem mais poesia ao redor do vinho. Na gestão, no enquadramento e no posicionamento do vinho também tenho a noção de que são mais objectivas», diz Vanessa Gonçalves, escanção independente a trabalhar actualmente para uma empresa de comercialização e distribuição de vinhos. «Estamos mais aptas para os aromas, ligamos mais aos pormenores e isso vê-se não só com as escanções mas também com enólogas e produtoras, por exemplo», afirma Donatília Vivas, gestora da enoteca Cartuxa, em Évora. Outra vantagem é apontada por Vera Oliveira, escanção responsável na Quinta das Lágrimas, em Coimbra: «Acho que a percepção junto do cliente é mais direccionada, vamos mais ao encontro dos seus gostos».
A sensibilidade da mulher para provar é novamente destacada por Teresa Matos Barbosa, responsável de negócios do produtor de vinhos João Barbosa, seu pai, que concorda que as mulheres têm os sentidos mais apurados, mas sente que os homens têm a vantagem de ter mais tempo para provar. «Os homens continuam a ter mais peso na profissão, as mulheres ainda continuam na rectaguarda. Não nos podemos esquecer que ainda é uma profissão muito associada à restauração, que tem horários difíceis, especialmente para as mulheres casadas e com filhos». Caroline Zagalo, a trabalhar com Vera Oliveira na Quinta das Lágrimas, aponta ainda algumas vantagens e desvantagens em relação aos homens: «As mulheres têm uma boa imagem, mas na prática perdemos porque ainda é um mundo de homens. Há homens que ainda não levam a sério as mulheres, especialmente as mais jovens, o que é injusto pois as mulheres sabem e trabalham tanto como os homens». Há assim, claramente, um desnível de oportunidades em relação aos homens. Esta é também a opinião de Teresa Gomes, uma das mais experientes escanções portuguesas. «Ser escanção é um cargo de chefia, e raramente vemos mulheres nesse cargo. Aliás, isso é transversal na hotelaria. A entidade patronal deveria dar as mesmas oportunidades» afirma. E remata: «Quanto à sensibilidade de homens e mulheres, é igual. Para mim, a sensibilidade desenvolve-se. A mulher tem, no entanto, a capacidade de pensar num todo, é mais harmoniosa. O homem tenta dissecar mais o vinho, enquanto que as mulheres criam maior envolvência».
O que reserva o futuro
Noutros países, as escanções já existem em bom número e é comum vê-las nos restaurantes, nas garrafeiras, nas distribuidoras e até nas competições internacionais a concorrer com os seus colegas homens. Tal como aconteceu noutros países, a tendência é que o interesse pela profissão continue a crescer em Portugal, mas tudo a seu tempo. Segundo as nossas profissionais, a melhor forma de cativar os jovens passa pela formação. «Uma formação que passe também pelos cursos profissionais e por estágios curriculares», avança Donatília Vivas, que ainda quer terminar o Mestrado de viticultura e enologia em Évora, que ainda não conseguiu concluir devido aos afazeres profissionais. O seu maior sonho é um dia fazer o seu próprio vinho num pequeno monte que tem em Reguengos de Monsaraz, a sua terra natal, e continuar a partilhar experiências. Teresa Gomes diz ainda que deveria haver mais mulheres a dar aulas: «É necessário saber despertar, cativar e direcionar os jovens para o prazer de comer e beber. Os programas de televisão têm feito esse papel, mas isso tem de passar também pelas escolas. E também deveríamos ter mais mulheres a dar aulas», sugere a escanção, para quem o futuro passa pela capacidade de renovação, de forma a continuar a inspirar os outros.
Caroline Zagalo sugere ainda a criação de grupos de mulheres que possam partilhar o gosto pelo vinho: «Gostava de formar um grupo de prova/formação no feminino para deixar as mulheres mais à vontade, familiarizá-las com o mundo do vinho sem as ‘esmagar’. Para ela, que não pensa muito no futuro, a ideia é deixar-se levar pelas oportunidades que surjam e, eventualmente, um dia trabalhar com algum produtor. O que importa, na verdade, é que comecem a aparecer cada vez mais. ««tal como acontece com as produtoras e as enólogas, por exemplo», diz Vera Oliveira, para quem um dia trabalhar marcas de vinhos de alguns produtores poderá ser interessante. Aliás, um desejo partilhado por Vanessa Gonçalves, que gostaria de vir a estar ligada a uma marca de referência, tal como acontece com alguns escanções no estrangeiro. «Quero, de um modo geral, que a profissão seja cada vez mais reconhecida. Gostaria muito que houvesse uma forte aposta na figura do escanção nos restaurantes, por exemplo». Continuar a herança familiar na produção de vinhos é o objectivo de Teresa Barbosa, que partilha ainda com as colegas o desejo de visibilidade e de reconhecimento. «As escanções portuguesas estão a mostrar o que valem. É fantástico ver o trabalho que estamos a fazer e agora é continuar a trabalhar para fazer muito mais e sempre melhor». O caminho é em frente.
Fotografia: Pedro Bettencourt
BIOGRAFIAS
Vera Oliveira
Quinta das Lágrimas
Tirou o curso de escanção na Escola de Hotelaria e Turismo de Coimbra. E foi no primeiro trabalho que arranjou que acabou por ficar até hoje. Começou há oito anos como empregada de mesa na Quinta das Lágrimas - um hotel de charme Relais & Chateaux onde existe um dos restaurantes de alta cozinha que é uma referência no centro do país - mas depressa as suas capacidades foram notadas e aos poucos, foi subindo de escalão até chefe de sala. Na busca de novos desafios, abraçou ainda o projecto dos restaurantes Refeitro e Café Teatro TAGV , em Coimbra, mas acabou por perceber que o seu lugar era mesmo na Quinta das Lágrimas. Para ela, não há melhor recompensa profissional do que agradecimento sincero de um cliente pelo vinho que lhe é sugerido. É sinal que se transmitiu com acções o amor que tem à profissão sem precisar de usar palavras.
(Na foto, a primeira a contar da esquerda)
Caroline Zagalo
Quinta das Lágrimas
Quando entrou na Escola de Hotelaria e Turismo de Coimbra estava mais interessada em aprofundar a área de bar mas, entretanto, um professor trocou-lhe as voltas e passou a gostar mais de vinho. Há dez anos, começou por estagiar na Quinta das Lágrimas, mas a sua sede de continuar a aprender fê-la sair do restaurante pouco tempo depois, para ganhar experiência de vida. Depois de outros tantos anos passados fora, a opção foi regressar ao local onde hoje se sente como peixe na água, e onde alcançou o cargo de chefe de sala. Juntamente com a sua colega e amiga escanção Vera Oliveira, tenta sempre proporcionar uma experiência gastronómica e vínica inesquecível ao cliente.
(Na foto, a terceira a contar da esquerda)
Vanessa Gonçalves
Gentil Vinhos / comercialização e distribuição de vinhos
Tirou o curso de hotelaria e o de escanção entre as Escolas de Hotelaria do Estoril e de Lisboa, respectivamente. Em 2002 começou como estagiária no Lawrence’s Hotel e acumulou experiência em outros locais como o Hotel Solplay e o já extinto wine bar Retiro de Baco, até 2012. Seguidamente, passou ainda pela empresa Silva Carvalho Restauração, até 2015. Com a experiência acumulada, e por questões familiares, decidiu lançar-se por conta própria, tendo sido consultora comercial na distribuidora Wine Man, na empresa de consultoria de vinhos Wine Service 4 You. E na quinta do Sobreiró de Cima. Actualmente, trabalha para a Gentil Vinhos, que comercializa e distribui vinhos.
(Na foto, a segunda a contar da esquerda)
Teresa Gomes
Empresária - Wine Solutions
Está desde 1997 ligada ao mundo dos vinhos. Tirou o curso de escanção na Escola de Hotelaria e Turismo do Estoril em 2001, e desde 2004 assumiu o risco de ser profissional independente ao criar a sua própria empresa, a Wine Solutions. Ao longo dos anos, foi ainda tirando vários cursos de aperfeiçoamento na área do vinho e acumulando experiência. Hoje, não há quem não a chame para promover momentos vínicos direccionados ao turismo, a empresas ou a particulares, quer como escanção ou wine educator. Elabora ainda cartas de vinhos para restaurantes e realiza acções de promoção. Em 2013 começou ainda a fazer Sommelier City Tours, passeios a pé vocacionados para os amantes de vinho e comida, pois acredita ser possível viajar por um país conhecendo gentes e costumes, terra e clima, cores e sabores. Um mundo de sensações à distância de um simples copo.
(Na foto, a primeira à direita)
Donatília Vivas
Gestora da Enotoca da Cartuxa
É do Alentejo e por isso desde miúda se habituou aos aromas e sabores do campo. Por essa razão, sente que tem o olfacto e o paladar apurados. O interesse pelo vinho surgiu-lhe naturalmente, já que familiares seus o produziam. Tirou o curso de Filosofia na universidade de Évora, e uma pós-graduaçã em higiene e segurança no trabalho, mas acabou por ceder à paixão do vinho especializando-se através do WSET (tem o nível 3). Em 1998 começou a trabalhar como guia / recepcionista na Herdade do Esporão, apoiando a área do enoturismo. Já nos últimos cinco anos em que lá esteve passou para o restaurante onde foi a responsável de vinhos / escanção. Com experiência acumulada, o ano passado mudou-se para a Fundação Eugénio de Almeida, mais especificamente para a mais recente enoteca da adega Cartuxa onde hoje é responsável de vinhos e gestora do espaço.
(Na foto, a segunda a contar da direita)
Teresa Matos Barbosa
Responsável de negócios e vendas da João Teodósio Matos Barbosa & Filhos
A paixão pelo vinho surgiu naturalmente, já que é filha de um produtor de vinhos. No entanto, começou por tirar o curso de Engenharia do Ambiente no Instituto Politécnico de Coimbra - Escola Superior Agrária, e só depois decidiu enveredar pelo mundo do vinho, ajudando o pai, o produtor João Barbosa, a promover os vinhos de família produzidos nas regiões do Tejo e Alentejo. Mais recentemente, para aprofundar ainda mais os seus conhecimentos nesta área, decidiu tirar o curso de escanção na escola de Hotelaria e Turismo de Lisboa, e hoje é a responsável pela área de negócios da empresa familiar. Para ela, que desenvolveu as suas competências no contacto directo com o cliente, a coerência, o sentido prático e o gosto por um trabalho bem feito são algumas das características para o sucesso da profissão.
(Na foto, a quarta a contar da esquerda)