Artigo

Frade dá a beber vinho de talha

Não, não é um frade de alguma ordem religiosa que anda a distribuir vinho de talha pelo povo. O Frade é um restaurante de origem alentejana, com longa história e tradição na produção própria de vinho de talha, que entretanto abriu portas em Lisboa. Numa época em que este estilo de vinho virou moda, o Frade sobressai por se ter especializado num produto tão tradicional, pela sua originalidade e diversidade.   

Localizado no número 14 da Calçada da Ajuda, numa das esquinas mais emblemáticas de Belém, em Lisboa (mesmo ao lado do palácio presidencial), o restaurante ‘O Frade’ é um legado familiar que vai já na terceira geração. Tudo começou em 1966, quando a família Frade abriu as portas do seu restaurante, em Beja, para partilhar os melhores sabores da sua terra com clientes, amigos e família. «A minha avó cozinhava muito bem, e o meu avô produzia o vinho de talha que se bebia no restaurante. Ainda me recordo quando ela se virava para ele e dizia ‘Ó Tónio’ (António), vai mexer o vinho! No final da refeição, ouvia-se o cante alentejano. Foram bons tempos», recorda Sérgio Frade que, juntamente com o irmão Pedro Frade, são os continuadores do negócio familiar que acabou por encerrar uns anos depois. «o meu pai ainda geriu o restaurante durante um tempo, mas apesar de estar muito ligado ao espaço, ele era contabilista; a minha mãe, funcionária do Estado; e eu e o meu irmão fomos estudar outras áreas. Na época não houve como continuar o negócio», explica Sérgio (à esq., na foto de entrada, com o irmão Pedro).

Muitos anos passados, quis o destino que o restaurante voltasse a ressurgir, agora em Lisboa. Tal como o avô e o pai, Sérgio sempre foi um apaixonado por boa gastronomia e vinhos. Formou-se em Educação Física e, após uma carreira como atleta de alta competição e professor, dedicou-se ao ramo imobiliário, passando uma temporada no Brasil antes de regressar a Portugal para investir no mercado local e lançar-se neste novo projecto. Já o irmão Pedro, formado em Biologia, é o Diretor de Operações do restaurante, tendo mais tarde tirado um MBA em Gestão com o irmão Sérgio, para juntos enfrentarem com maior conhecimento e segurança o desafio.  

Inaugurado em 2019, o conceito do Frade passa por ser um espaço de sabores tradicionais, genuinamente alentejanos, com uma apresentação moderna. No final de 2021, evoluiu ainda mais no conceito, que se expandiu para o receituário nacional, com um foco muito especial no vinho de talha que é produzido exclusivamente no restaurante. O projecto, distinguido em 2022 como espaço Bib Gourmand pelo Guia Michelin, como um dos cinco espaços nacionais com melhor qualidade-preço, tem ao leme do fogão o chefe Diogo Carvalho e o sub Chefe Rodrigo Oliveira. Do menu, destacam-se algumas novidades como o Rissol especial de lingueirão, o Rabo de boi estufado com legumes, o Arroz cremoso de cogumelos (opção vegetariana), ou o já famoso Arroz de Pato à Frade. Para adoçar o palato, o restaurante sugere Bolo e gelado de noz ou o Dom Rodrigo com limão e merengue.

Inaugurado em 2019, o conceito do Frade passa por ser um espaço de sabores tradicionais, genuinamente alentejanos, com uma apresentação moderna
As propostas gastronómicas reflectem o conhecimento adquirido ao longo destes anos, com maturidade e consistência



Estas propostas gastronómicas refletem o conhecimento adquirido ao longo destes anos, com maturidade e consistência. A equipa do restaurante procura trabalhar diariamente com ingredientes frescos e exclusivos, dando especial atenção à sua origem. Dividido em duas zonas distintas, o balcão e a esplanada, o projeto está assente em três pilares fundamentais – tradição, produto e serviço -, tendo como intuito elevar o produto e a gastronomia nacional a um patamar diferenciador, temperando-o com a criatividade e as técnicas do chefe.


Da talha para o restaurante

Apesar da tradição milenar, muito enraizada no Alentejo, o vinho de talha só voltou a estar na moda nos últimos anos. Elaborado de forma muito tradicional, os cachos de uva chegam à adega, são desengaçados e esmagados. Depois, as massas vínicas são colocadas dentro das talhas de barro, onde cerca de 24 a 48 horas depois iniciam um processo de fermentação. Durante a vinificação, que decorre num período entre 10 a 15 dias, é necessário diariamente quebrar a ‘manta’ que se vai formando à superfície da talha. Nos dias seguintes, sobe-se à ‘burra’ (escadote de madeira) e com recurso a um rodo de madeira, em forma de T, a massa é revolvida, de forma a mergulhar as películas e grainhas das uvas no mosto, garantindo a extração dos seus componentes. Terminado o processo de fermentação, é necessário aguardar que a massa sólida se deposite no fundo da talha, que servirá de filtro natural ao vinho, quando as talhas forem abertas, maioritariamente no mês de Novembro. Após a abertura, o vinho da talha é esvaziado para alguidares de barro, e posteriormente armazenado numa talha limpa até ser engarrafado no início do ano seguinte. Durante este período, o vinho irá incorporar aromas e sabores, até ser finalmente degustado.

No restaurante Frade, esta tradição é relembrada no restaurante, e destacada pelo par de irmão, mas essencialmente pelo pai, Alexandre Frade, agora mais liberto da contabilidade, que retomou com entusiasmo a produção de vinho através de vinhas velhas que já tinha (vinha do Roque, com mais de 50 anos), e outras que entretanto adquiriu, de solos mais arenosos, xistosos e de cascalho, junto às minas de São Cucufate. Para a plantação das novas vinhas, a cepas velhas foram fundamentais, já que foram utilizadas varas retiradas das plantas centenárias.  «Esta nova vinha é um centro de genoma que está a ser acompanhado pela Universidade de Évora e pelo Grupo de investigação da Plansel, porque temos variedades muito antigas que estamos a recuperar. É o caso da Defensor, uma casta branca híbrida, uma junção genética que estamos a estudar e a testar nos solos para voltar a utilizar na produção dos nossos vinhos», explica Sérgio.  

Sendo o braço direito dos filhos, Alexandre Frade é também um ‘engenhocas’. «Tirou o curso de Enologia em Beja e está sempre a tentar encontrar soluções para melhorar a produção de vinho. Transfere os vinhos de uma talha para a outra com uma bomba de transfega para evitar a oxidação do vinho. Leva a coisa muito a sério, ao ponto de estarmos a construir uma nova adega gravitacional para vinho de talha, com talhas feitas à medida, que estará pronta no Verão de 2023», revela Sérgio. «E ainda inventou uma ferramenta que faz içar  e rodar a talha, para a conseguirmos pesgar melhor, como se fosse uma betoneira», remata o filho, orgulhoso. Não é por isso de estranhar que tenha sido  «o primeiro presidente da Associação dos Produtores de vinho de Talha», facto que ajudou a dinamizar e criar maior visibilidade para estes vinhos tradicionais produzidos na região.


Das gamas produzidas – ACV (branco e Tinto), D. Alice (branco e tinto), Castas Antigas (branco) e Peculiar (tinto) – foram provados o Castas Antigas branco e o Peculiar tinto, ambos de 2018. O branco, produzido com as castas  Antão Vaz, Arinto, Diagalves, Larião, Manteúdo, Perrum e Roupeiro, é um orange wine (branco com maceração pelicular prolongada), de aroma resinoso, floral e especiado, paladar fresco, intenso e equilibrado, com boa estrutura e final prolongado. Um grande branco de talha. Já o tinto, das castas Aragonez e Trincadeira, revelou aromas de fruta, notas vegetais e de especiaria, com ligeiro toque de pólvora. Estruturado e poderoso, é um tinto intenso, ainda com taninos a precisar de tempo, que perduram no paladar.  Vinhos especiais que pela sua originalidade e equilíbrio perduram na memória.