Garrafeiras, profundos e intemporais
Um sonho antigo iniciado no Alentejo em 2017 por Luísa Amorim e o marido, Francisco Rêgo, assentou numa aposta de grande qualidade. Após terem produzido na sua propriedade da Aldeia de Cima dois Reservas e dois Grandes Reservas, surgem agora dois Garrafeiras (branco e tinto), provenientes de uvas excepcionais que simbolizam a expressão máxima da riqueza do terroir da Serra do Mendro e, ao mesmo tempo, reavivam a tradição através da vinificação em balseiros.
Quem acompanhou este projecto desde o início, pôde testemunhar com gosto um trabalho realizado com entusiasmo e perfeccionismo. Um desafio que incluiu, no meio de tantos outros, a construção de 14 hectares de vinha em socalcos e patamares com diferentes declives, que se transformaram numa das mais arrojadas experiências de viticultura da paisagem alentejana. O Douro trazido para o Alentejo, onde foram plantadas as castas Alicante Bouschet, Trincadeira, Aragonês, Baga e Alfrocheiro nas castas tintas, e Antão Vaz, nas brancas.
O tempo passou rápido. Em 2017 não havia quase nada, apenas ruínas e um terreno com 2.400 hectares de sobrado, que o pai - o empresário Américo Amorim - adquiriu em 1994 no intuito dali produzir vinho e recuperar a memória dos grandes vinhos alentejanos tão ao seu gosto. Foi esta herança e a memória dos grandes vinhos que Luísa partilhou com a sua equipa de Viticultura e Enologia, de forma a alcançar o sonho familiar.
Os primeiros vinhos da propriedade, dois Reservas e dois Grandes Reservas, já haviam demonstrado bons resultados, mas os tão desejados vinhos de Garrafeira só surgiram agora, já com o projecto a demonstrar maior maturidade.
Garrafeira é um termo bastante antigo em Portugal, utilizado para vinhos especiais, de qualidade, engarrafados e envelhecidos em cave. No Alentejo, este significado ganha ainda mais força, sendo uma menção apenas reservada aos vinhos de topo. No caso dos tintos, têm de ter um estágio mínimo de 30 meses (dos quais pelo menos 12 meses em garrafa) e, nos brancos, um estágio mínimo de 12 meses (dos quais pelo menos 6 em garrafa). A fermentação em balseiros de madeira 3000 litros explora uma temperatura mais natural e tradicional, e por isso mais lenta, fornecendo mais taninos e uma micro-oxigenação ao vinho, preservando assim a sua cor, aroma e frescura da fruta. Neste contexto de sustentabilidade e preservação do carácter varietal dos vinhos, os balseiros permitem assim obter maior equilíbrio, elegância extra e uma melhor percepção do terroir.
Dois Grandes Vinhos
Jorge Alves e António Cavaleiro assinam os vinhos da Herdade da Aldeia de Cima. Desde o arranque do projeto estava definido que a fermentação dos vinhos em balseiros de carvalho e em cubas de cimento seria uma realidade nesta adega com capacidade máxima para 100.000 garrafas. E o perfil dos vinhos, clássicos e elegantes, tinham de preservar a autenticidade do lugar e evidenciar a enorme complexidade dos solos alentejanos, tão heterogéneos, diferentes de qualquer parte do país. «Depois da vindima de 2019, e de termos trabalhado na adega, percebemos a enorme riqueza e diversidade que tínhamos à frente. Não existe uma peça igual à outra, e por isso conseguimos obter nos vinhos uma complexidade extraordinária, a par da boa surpresa nas vinificações em grandes formatos de madeira e cimento, e na lenta oxigenação em superfícies mais porosas, como a argila e o gesso», explica Luísa Amorim. «A escolha de três tanoarias francesas diferentes – Taransaud, Radoux e Boutes – teve como base três critérios qualitativos: a proveniência da madeira/controlo da matéria-prima na floresta, o grau de porosidade, associada ao método de secagem, e ao perfil aromático do tanoeiro. Do ponto de vista técnico, o fabrico de balseiros representa a produção de peças únicas, feitas apenas por encomenda, para clientes especiais, e demoram meses para entregar, exigindo um processo complexo de montagem exclusivamente manual. Estas madeiras são altamente selecionadas, provenientes de florestas do centro de França, de árvores de carvalho com cerca de sete metros de altura, e dão origem a aduelas para um balseiro de 3000 litros com um comprimento total de 1,70m, uma espessura de 54mm e uma largura média de 8cm. Cada um destes factores confere uma subtileza grandiosa, tornando as notas de madeira muito mais suaves do que o normal», remata. É nesta filosofia que foram escolhidos os oito balseiros para a Herdade Aldeia de Cima, todos eles integrados com sistema de refrigeração e cuidadosamente apetrechados com as ferramentas necessárias ao enólogo (escala, torneiras e provadeira em inox). Ao realizar algumas experiências em alguns deles, com brancos e tintos, entendeu-se que este seria o caminho certo para produzir os dois novos Garrafeiras.
Elaborado 70% com Antão Vaz, 15% Arinto, 10% Perrum e 5% Alvarinho, o Garrafeira branco 2020 foi fermentado e estagiado em balseiro novo de carvalho francês de 3000 litros durante 9 Meses, seguidos de mais 16 meses em garrafa. Intenso, marcante, com acidez bem presente, prolonga-se no paladar. Um vinho onde encontramos a matriz profunda da Vidigueira revelado pela base do Antão Vaz, num conjunto afinado com a frescura e mineralidade das restantes castas. A qualidade deste vinho é obviamente inegável mas, diz quem vos escreve, é o tinto que mais surpreende.
O Garrafeira tinto 2019 é, sem dúvida, um vinho intemporal, elaborado com as melhores uvas de Alicante Bouschet (50%) e Aragonez (50%), elegante no aroma e estruturado no paladar. Tal como o seu irmão branco, foi fermentado e estagiado em Balseiro Novo de Carvalho Francês de 3000 litros, mas estagiou durante 12 meses na madeira, seguidos de mais 18 meses em garrafa. Um enorme tinto, aveludado, mineral, com uma frescura e profundidade impressionantes. Aquele tinto raro, com um retrogosto incrível, que deixa qualquer profissional da área emocionado, mesmo após tantos anos a provar vinhos.