Manuel Vieira – Enólogo tarimbado
É um dos mais experientes profissionais portugueses a fazer vinho. Trabalhou uma vida na Sogrape mas desde 2011 trabalha como consultor de enologia em diferentes produtores nacionais.
O seu pai foi um grande enólogo português, foi por isso que se começou a interessar pelos vinhos?
É claro que sim! Embora com algum sentido prático me tenha aconselhado sempre a não ir para Enologia porque era uma profissão de tesos! E não estava longe da verdade! (risos) No entanto os seus conselhos caíram em chão fértil, pois quando fui para a Universidade optei pelo Técnico, pelo curso de engenharia Mecânica, onde passei dois anos a embirrar com o átrio da entrada, que era demasiado pomposo e acabrunhante, e por isso resolvi passar a frequentar a Faculdade de Ciências, com um ambiente bem mais simpático, uma esplêndida alameda de palmeiras, um laboratório do tempo do Marquês de Pombal, e um jardim botânico mesmo ao lado! Fiquei lá dois anos e não passei do 2º ano de Engenharia Mecânica, até que fui chamado para ir para a tropa. Foi já em Angola, onde estive em comissão de serviço durante 26 meses, que me decidi, numa daquelas noites maravilhosas de África bem regadas com whisky (única bebida a que tínhamos acesso), a enveredar pela enologia, apesar dos conselhos contrários do meu pai. Mas não estou arrependido dessa minha alcoólica decisão, antes pelo contrário! (risos).
Em 1985 entra para a Ferreira e trabalha com uma equipa de enologia de topo. Como surgiu essa oportunidade e como foi a experiência?
Foi o José Maria Soares Franco que me convidou para integrar a equipa da Ferreira. Lembro-me ainda hoje muito bem da cara dele a olhar para mim, em profunda meditação sobre o assunto ( nunca teve muito jeito para disfarçar as emoções!). A cena passou-se no Centro de Estudos Vitivinícolas da Régua, onde eu comecei a minha vida profissional, numa sessão de provas de vinhos do Porto que tinha sido encarregado de organizar. Aceitei após alguma hesitação, pois o tempo que passei na Régua foi a todos os títulos entusiasmante, mas não podia recusar uma oportunidade como aquelas de ir trabalhar com Fernando Nicolau de Almeida, um mito da enologia portuguesa, pai do Barca Velha. Aquele período foi fundamental para a minha formação como enólogo, pois a enorme experiência e sensibilidade de prova que Fernando Nicolau de Almeida possuía, aliada à sólida formação enológica e exigência de qualidade do José Maria Soares Franco moldaram-me como enólogo a partir dessa altura.
Mais tarde foi para Carvalhais, como encarou este desafio, apaixonou-se pelo Dão?
Apaixonei-me e não foi pouco. Acabado de vir do Douro com todo o seu carisma, ao princípio estranhei um pouco a nova realidade que constituía o Dão, tanto a nível de paisagem vitícola, como em relação aos vinhos, muito diferentes do que eu estava habituado. Os vinhos do Dão surgem na vindima muito discretos e austeros, tardam a afirmar-se, em contraste com a exuberância que surge logo de início nos vinhos do Douro. Mas depois fui sendo conquistado aos poucos pela elegância e complexidade dos vinhos do Dão e hoje em dia sou um fã incondicional da região.
Também passou pelos Vinhos Verdes, foi um desafio igualmente gratificante?
Fui responsável em simultâneo pelas duas regiões do portfolio Sogrape, Dão e Verdes até sair, ao atingir a reforma. São duas realidades completamente diferentes, que me desafiaram de uma maneira apaixonante, e é com imenso orgulho que recordo, em relação ao trabalho que desenvolvi na região dos Verdes, o desafio que foi relançar a marca Gazela, hoje em dia com uma presença fortíssima no mercado nacional e internacional.
Quais são os seus vinhos de eleição?
Sou um ‘brancófilo’ assumido! Costumo dizer que ‘quando for grande’ gostaria de fazer um vinho como os grandes brancos da Borgonha! (risos). Por isso, na Quinta de Carvalhais dei imensa atenção aos vinhos brancos, maioritariamente da casta Encruzado, que com a sua reconhecida e nobre capacidade de envelhecimento me permitiram fazer vinhos brancos de guarda como sempre ambicionei. E agora noutros produtores continuo a dar igual atenção aos brancos. Considero o mundo dos brancos uma realidade com muita diferenciação, mais do que a dos tintos, e daí talvez a explicação desta minha preferência. Mas também sou um grande admirador dos espumantes com idade. E, claro que os tintos não me deixam de maneira nenhuma indiferente, mas estou cada vez mais partidário da elegância e da finura nestes. Posso dizer que a chamada ‘parkerização’ dos vinhos me causou alguns traumas em relação aos tintos, quando pesados e extraídos, a abarrotar de madeira!
Imagino então que o vinho que mais gozo lhe deu fazer em Carvalhais foi um branco!
Sim, obviamente, o Quinta de Carvalhais Encruzado! Porque penso ter sido pioneiro no Dão da vinificação dita ‘borgonhesa’, foi nos grandes vinhos da Borgonha que me inspirei. Depois de ter feito diversas experiências com castas do Dão, foi a Encruzado que resultou melhor. Lembrei-me agora que também me deu muito gozo fazer o espumante rosé da Quinta dos Carvalhais, com Touriga Nacional e Encruzado.
E mais recentemente, nos produtores onde está, continua a fazer novas experiências?
Claro, não podemos parar.
Fale-me dos vinhos mais desafiantes de cada um dos produtores para onde actualmente trabalha!
É sempre difícil escolher, mas vejamos… na Caminhos Cruzados, por exemplo, deu-me muito gozo fazer o Teixuga branco, um vinho que é um retorno ao velho Encruzado do Dão, com estágio em madeira. Já o Kaputt, da Barão de Vilar, é um branco que contém várias colheitas, ou seja, um blend de vinhos de vários anos, acho que também ficou muito engraçado e diferente... Por último o Quinta de Cottas Touriga Nacional Unoaked, da Quinta de cottas, que é uma interpretação muito própria que tenho da casta Touriga e, como o próprio nome indica (unoaked), sem estágio em madeira.
Conte-me um episódio caricato que lhe tenha acontecido na sua vida profissional.
Quando entrei na Ferreira para trabalhar com Fernando Nicolau de Almeida e José Maria Soares Franco foi-me imposto um período experimental de 6 meses, findo os quais seria avaliada o meu desempenho para ser ou não admitido nos quadros. Um dos trabalhos que eu desempenhei na altura era a medição do pH dos vinhos, técnica ainda algo balbuciante na altura, e que, para Fernando Nicolau de Almeida, era pura alquimia! Quando a administração da Ferreira ao fim dos 6 meses de estágio lhe perguntou qual era a sua opinião acerca da minha contratação respondeu: Acho muito bem que o contratem pois tem um dos melhores narizes para medir o pH dos vinhos!
Que mensagem gostaria de transmitir aos jovens enólogos que estão a começar agora a sua carreira?
Que não tenham preconceitos em relação aos diferentes tipos de vinhos! Provem e tentem compreender os brancos, tintos e rosés, secos ou doces, ácidos ou menos ácidos, fortificados ou tranquilos, espumantes ou colheitas tardias Provem tudo com o coração aberto à novidade, à diferença, sejam sempre verdadeiros consigo próprios, não se deixem embalar em modas. E tenham a maior consideração pelo consumidor que vai beber o vinho que produziram!
Após a saída da Sogrape, em 2011, entregou-se a outros projetos, quer falar um pouco deles?
Passei pela Quinta do Pinto, na região de Lisboa, onde fui encontrar uma série de castas que nunca antes tinha trabalhado e achei um desafio muito interessante. Ainda na região de Lisboa passei pela Quinta da Romeira e, mais a norte, em Trás-os-Montes, na Quinta Vale de Passos. Os projecto evoluem e, entretanto, actualmente, encontro-me na Caminho Cruzados, no Dão; na Barão de Vilar e na Quinta de Cottas, ambas no Douro.
BIOGRAFIA
É diplomado em Engenharia Agro-Industrial no Instituto Superior de Agronomia. Iniciou a sua carreira na Casa Ferreirinha, na altura sob o comando de Fernando Nicolau de Almeida, um dos maiores vultos da enologia portuguesa. Após 26 anos na equipa de enologia da Sogrape (empresa que comprou a Ferreira), onde teve sob seu comando os vinhos das regiões Vinhos Verdes e do Dão, entregou-se a outros projectos como consultor de enologia independente. Passou pela Quinta do Pinto e pela Quinta da Romeira (ambas na região de Lisboa), e pela Quinta de Vale de Passos (em Trás-os-Montes). Actualmente, é consultor nos produtores Caminhos Cruzados (Dão), Quinta de Cottas e Barão de Vilar (ambas no Douro).