O Passado Engarrafado
Já se sabe, somos um dos países do mundo com mais castas, mas a verdade é que a maioria dos produtores nacionais trabalha sempre com as mesmas. A Lusovini / Pedra Cancela foi contra a corrente e iniciou há anos um trabalho de recuperação de castas, que agora dá a conhecer, através do lançamento dos primeiros cinco vinhos.
Costuma dizer-se, e é verdade, que a melhor forma de Portugal vencer no mercado internacional é pela sua qualidade e originalidade. O caminho não é, por isso, traçado pelos milhares de garrafas que não conseguimos produzir, mas sim pela sua diferenciação, incluindo os vinhos de castas raras que despertem a curiosidade dos apreciadores de vinho não só a nível nacional, mas também no resto do mundo. Ciente desta realidade, a Lusovini decidiu ir em frente com um trabalho exemplar de recuperação de castas que agora quer dar a conhecer de forma a evidenciar cada vez mais a qualidade dessas mesmas castas.
O Dão tem uma boa diversidade de castas e é a região que mais tem variedades portuguesas desconhecidas. Juntando-se às restantes variedades existentes em território nacional (no total são 343 castas registadas) faz com que a produção de vinho nacional seja especial a nível mundial. Ciente disso, quando em 2015 a Lusovini / Pedra Cancela adquiriu a Vinha da Fidalga, uma propriedade do século XVIII situada em Carregal do Sal, no Dão, decidiu que uma parte do investimento vitícola seria feito em castas da região que se encontravam praticamente extintas.
A plantação dos 3,5 hectares existentes para o efeito fez-se entre 2017 e 2019, e a condução das videiras foi delineada em monoplano ascendente, com poda longa, no caso, unilateral. Por não existir informação técnica na zona de frutificação sobre as castas não se optou pela poda curta. «Fomos pela lógica que nos parece mais eficaz», diz Casimiro Gomes, sócio da Lusovini / Pedra Cancela. «Para plantar fomos buscar material genético ao Centro de Estudos Vitivinícolas do Dão, em Nelas, mas também a velhos viticultores que sabiam onde elas se encontravam no campo… No início ficaram desconfiados, não foi fácil criar uma relação com eles, especialmente porque embora esteja cá há muitos anos sou um 'achadiço' (pessoa de fora, no caso de Casimiro, da Bairrada). Acharam estranho procurarmos castas que tinham sido abandonadas, mas com o tempo perceberam que se podia fazer vinho interessante com essas castas e agora trabalham connosco lado a lado, com o mesmo entusiasmo», explica ainda o produtor. Para complementar o lado empírico, a Lusovini / Pedra Cancela chamou como consultor Amândio Cruz que, além de doutorado em viticultura pelo ISA, colabora em vários projetos de investigação europeus e nacionais na área da viticultura, é autor de inúmeras publicações, bem como responsável de viticultura no Conselho Coordenador das Atividades Profissionais da Associação Portuguesa de Enologia.
No total foram plantadas na Vinha da Fidalga 22 castas «mas deixámos 10 para trás porque a produção era menos interessante ou rudimentar», explica Casimiro Gomes. Ficaram então na vinha a Arinto do Interior, Gouveio, Luzidio, Uva Cão, Terrantez, Barcelo, Rabo d’Ovelha, Douradinha (brancas); e Coração de Galo, Malvasia Preta, Monvedro e Cornifesto (tintas). E após terem sido feitas as primeiras microvinificações destas variedades, foram finalmente produzidos, em 2022, os cinco primeiros vinhos das castas com melhores resultados e melhor potencial comercial. As eleitas foram as brancas Terrantez, Douradinha e Uva Cão, e nos tintos a Malvasia Preta e a Monvedro, agora lançados no mercado.
Sónia Martins (enóloga e CEO da Lusovini / Pedra Cancela) foi a responsável pelo processo de vinificação e estágio dos vinhos, que foi feito da forma mais natural possível. «Fizemos tudo em depósitos de inox e utilizámos leveduras neutras para melhor percepcionar as características de cada uma das castas e assim obter informação autêntica, sem artifícios», explica a enóloga. «procurámos selecionar as castas mais diferenciadoras mas, obviamente, tivemos também em conta a sua frescura e potencial de envelhecimento», remata.
Apesar do conhecimento da equipa envolvida neste trabalho, o estudo das castas e os seus resultados foram muito úteis para as gerações futuras, já que é escassa a informação sobre o seu comportamento. Um legado de valor inestimável que contribui para que estas castas venham a ter maior projeção. «O comportamento das castas é muito interessante. A Uva Cão, por exemplo, é uma casta que resiste muito bem ao stress hídrico e não perde acidez mesmo em zonas mais soalheiras. Já a Monvedro, por exemplo, é uma casta pouco colorida e estruturada, muito sensível ao sol, e por tem de estar numa zona de sombra, mais fresca. Já a casta Douradinha, é sensível à podridão cinzenta, tem de estar mais exposta e arejada», exemplifica. E continua: «foram estes comportamentos que provavelmente fizeram com que os produtores abandonassem estas castas... Se na altura da colheita os produtores entregassem a uva Douradinha com podridão cinzenta eram logo penalizados e perdiam dinheiro. E a Monvedro, que é uma casta de cor mais suave e menos estruturada, menos alcoólica, certamente foi deixada para trás por isso mesmo, já que no passado o consumidor queria era vinhos mais carregados, estruturados e alcoólicos».
Recorde-se ainda que, desde a década de 60 até finais dos anos 80, o movimento cooperativo ainda era muito forte, e só a entrada de Portugal na Comunidade Europeia fez com que surgissem mais produtores e novas marcas que ao longo do tempo foram assumindo outros perfis. «Sabemos que ainda há muito trabalho a fazer, e não queremos uma rua com o nosso nome», graceja Casimiro Gomes, «mas este trabalho que estamos a fazer é uma pedrada no charco, afinal, deveriam ter sido os serviço sociais a fazer», remata, em tom de crítica.
Raros e Únicos
Para já, estes vinhos foram lançados em monocasta mas, no futuro, também poderão servir para vinhos de lote. Cada variedade encheu entre 1200 a 1500 garrafas (todas da colheita de 2022) e foi lançada para o mercado a um preço médio de 35€.
O primeiro vinho a ser provado foi o Pedra Cancela Terrantez. Segundo a equipa da Lusovini, a Terrantez do Dão não tem nada a ver com a Terrantez da Madeira ou a dos Açores. É, assim, um Terrantez ‘regional’, facto comprovado pelas pesquisas e análises genéticas da casta realizadas por Amândio Cruz. Em prova revelou um aroma mineral e vegetal, e uma acidez muito equilibrada e interessante. Sem dúvida, o mais equilibrado dos brancos.
Já o Pedra Cancela de Uva Cão revelou um perfil muito original, evidenciando-se o seu aroma intenso, salino e iodado, com um ligeiro toque de oxidação superior aos restantes vinhos da prova. Um perfil fora do comum para a região. Estruturado e profundo, tem um final de boca que surpreende. Quanto ao último branco, o Pedra Cancela Douradinha, revelou-se entre todos o mais exuberante a nível aromático, com notas florais em grande destaque. No paladar, todo ele é muito seco, e no conjunto o de maior acidez. Provavelmente, o que terá melhor capacidade de envelhecimento.
Chegando aos tintos, tanto o Pedra Cancela Malvasia Preta como o da casta Monvedro mostraram um perfil que vai ao encontro das tendências mundiais. Vinhos mais suaves, menos carregados na cor e no paladar, mas ambos com excelente frescura e estrutura elegante. O Malvasia destacou-se pela fruta bonita e pela suavidade no paladar, sendo um vinho pouco alcoólico e muito agradável. Já a Monvedro destacou-se pela estrutura, ligeiramente mais marcada que o vinho anterior.
Sem dúvida um trabalho muito interessante. Resta a esperança que a Lusovini continue o trabalho exemplar que tem vindo a desenvolver, capaz de abrir portas a outros produtores que lhes sigam o exemplo e de contribuir para a preservação do nosso rico património vitivinícola.