Vinhos históricos, musas inspiradoras

Há vinhos que nascem inspirados no contexto histórico que os rodeiam. É o caso desta trilogia de vinhos inspirada no mosaico das musas encontrado em Torre de Palma, em Monforte, e nas práticas milenares de vinificação da época dos romanos. Os novos vinhos fermentaram em lagares de mármore e estagiaram em ânforas italianas inertes, produzidas com um barro menos poroso que permite uma micro-oxigenação controlada, sem alterar o perfil dos vinhos.
Paulo Barradas, o empresário farmacêutico proprietário do Torre de Palma Wine Hotel, não esconde o entusiasmo ao apresentar a nova trilogia de vinhos inspirada no legado romano existente no seu território e na ligação profunda que tem com o Alentejo. «Com estes vinhos queremos homenagear os romanos. Esta gama é inspirada nas tradições vitivinícolas da Roma antiga, e nos romanos que aqui viveram e produziram vinhos em Torre de Palma», explica. André Carneiro, arqueólogo e professor na universidade de Évora completa a ideia: «Estas ruínas revelam o grande complexo habitacional com instalações agrícolas que aqui existia. Encontram-se situadas a pouco mais de duzentos metros do hotel de Torre de Palma e dão a conhecer o modo de vida local de há mais de dois mil anos».
Segundo reza a história, contada nos painéis do centro interpretativo de Torre de Palma, as ruínas foram descobertas por acaso, numa manhã de Março de 1947, pelo senhor Joaquim Inocêncio, um trabalhador que por ali andava a amanhar a terra com a sua charrua, e descobriu um pequeno fragmento de mármore trabalhado que pertencia ao capitel de uma coluna. Após o almoço – uma açorda engolida à pressa para ganhar força – agarrou num enxadão e começou a cavar devagar, afastando a terra até encontrar, a 50cm de profundidade, um pavimento de pedrinhas coloridas com configurações para ele desconhecidas. No entanto, consciente de que se tratava de uma descoberta importante, correu a chamar o patrão, iniciando-se pouco tempo depois os trabalhos arqueológicos que puseram a descoberto o belo mosaico das musas de 10,24 X 6,35.
Este mosaico das Musas é uma das mais notáveis obras de arte romana encontradas em Portugal. «Este pavimento decorava o triclínio (sala de jantar) da residência senhorial e representa as nove musas da mitologia greco-romana, associadas a Bacchus/Dionísio, numa composição de grande sofisticação artística», explica ainda André Carneiro. A autoria do mosaico é atribuída a uma oficina itinerante africana, possivelmente da Tunísia, evidenciando a circulação de artistas e técnicas no Império Romano. Após a sua descoberta, o mosaico foi cuidadosamente levantado por técnicos italianos e transportado para o Museu Nacional de Arqueologia, em Lisboa, onde ainda hoje permanece exposto.


As nove musas da mitologia greco-romana eram divindades associadas às artes e ciências, filhas de Zeus e Mnemósine. Cada musa tinha um domínio específico, como Calíope (poesia épica), Clio (História), e Euterpe (música), entre outras. O mosaico das Musas, retrata assim os seus atributos, refletindo o valor atribuído à cultura e às artes pela família proprietária. Situado no triclinium (sala de jantar), o mosaico destaca o estatuto e o gosto refinado dos habitantes da residência, que exaltavam o conhecimento e a inspiração divina. Inspirados neste contexto histórico, a família Barradas decidiu então reavivar memórias passadas através do lançamento da gama de vinhos Musas.
A história vínica da Torre de Palma começou há já alguns anos, em 2014, com o enólogo Luís Duarte. Para produzir o primeiro vinho foi preciso comprar uvas a outros produtores. «Só a partir de 2015 começamos então a vinificar com uvas próprias e, em 2017, com a entrada do enólogo residente, Duarte de Deus, o projeto ganhou maior maturidade, consolidando-se com vinhos que combinam as castas Arinto com Alvarinho e Alicante Bouschet com Tinta Miúda. Foi também em 2017 que surgiu o primeiro vinho de talha, inspirado nas ânforas italianas, com apenas mil garrafas produzidas. O sucesso levou à compra de mais talhas e ao aumento da produção» explica o produtor.
A vontade de ir mais longe fez agora nascer a trilogia Musas, os vinhos branco, rosé e tinto. O tinto, de 2022, foi o primeiro a surgir. O branco e o rosé, ambos de 2023, vieram completar o trio, com destaque para o rosé, que em prova se mostrou muito gastronómico. «Estamos muito entusiasmados com os três vinhos. São uma pérola», conclui Paulo Barradas, que vê neste lançamento a evolução natural de um projeto que une o passado com o presente. Para o empresário, «é um privilégio viver esta terra, este céu, este sol alentejano. O vinho é, acima de tudo, a relação entre as pessoas e alegria, razão pela qual tem sido um elemento agregador desde o início do projeto», remata.
* Na foto de entrada, Paulo Barradas (o 2º a contar da dirt) com a mulher Isabel e a filha Luísa, e o enólogo Duarte de Deus
ENTREVISTA / DUARTE DE DEUS

O projeto Musas apresenta uma trilogia de vinhos marcada pela frescura, elegância e uma identidade própria. Numa conversa descontraída, o enólogo Duarte de Deus explica o processo criativo, as escolhas enológicas e a filosofia que dá vida a estes vinhos pensados para a mesa e para evoluir no tempo.
Maria João de Almeida (MJA) – Como nasceu este projecto?
Duarte de Deus (DD) – O projeto Musas nasceu da vontade de recuperar técnicas romanas de vinificação, aplicando tecnologia moderna. Fermentámos os vinhos em lagares de mármore e, em vez de usarmos barricas, envelhecemos o vinho em ânforas italianas inertes, feitas de um barro menos poroso. Isso permite uma micro-oxigenação controlada, sem interferir no sabor, ao contrário das talhas alentejanas, que muitas vezes têm resinas
MJA – O tinto foi o primeiro vinho a ser idealizado. Porquê?
DD – O tinto foi pensado para a mesa e para harmonizar com a gastronomia do Alentejo – pratos fortes como borrego, porco preto, caça. Usámos castas locais: a Aragonês e a Antão Vaz. Inspirámo-nos na técnica de co-fermentação observada no Côte-Rôtie, onde se mistura Syrah com Viognier. Aqui, o Antão Vaz, que é uma casta branca, suaviza o tanino do Aragonês que por ser tinto é mais presente. É um vinho vibrante, com estrutura e frescura, pensado para pratos intensos. Começámos em 2019 com 1000 garrafas e, em 2021, duplicámos a produção. O mercado tem reagido muito bem.
MJA – E os restantes, quando foram lançados?
DD – Em 2023, completámos a gama com o branco e o rosé. O branco nasce de uma vinha de Viosinho na Serra de São Mamede. Fizemos uma produção muito limitada – 750 litros – e deixámos que fizesse parcialmente a fermentação maloláctica para lhe dar mais volume e untuosidade. É um branco encorpado, ideal para acompanhar queijos amanteigados e peixes gordos – bem diferente do resto do nosso portfólio, que tende a privilegiar a frescura.
Já o rosé é um exercício de ruptura. Não queríamos o típico rosé leve e frutado, de piscina. Escolhemos Touriga Nacional para criar um rosé seco, mineral, com acidez vibrante e capacidade de guarda. Acreditamos que pode evoluir bem por 10 anos e acompanhar pratos sérios, como um bom presunto ibérico. É um rosé sério, gastronómico, e foge completamente do cliché.

MJA – Embora diferentes, percebe-se que todos os vinhos têm em comum essa frescura, elegância e bom potencial de guarda.
DD – Exatamente. Apesar de diferentes, partilham essa identidade. Queremos provar que é possível fazer vinhos elegantes, frescos e com potencial de guarda mesmo numa região quente como o Alentejo. O rosé, por exemplo, casa lindamente com pratos de verão tradicionais alentejanos, como sopas de tomate com pimento ou figos.
MJA – O rosé destaca-se, é realmente fantástico, mas o branco de talha pareceu-me de todos o mais genuíno. Tem aquela porosidade dos vinhos de talha que não engana, lembra-me o sabor poroso da água fresca daqueles jarros de barro rústicos de antigamente…
DD – Essa memória é muito bonita, e é mesmo isso que procuramos evocar: o lado sensorial, da terra e da tradição, mas com o rigor técnico e de sofisticação.
MJA – A triologia vai manter sempre as mesmas castas ou isso pode variar?
DD – O tinto vai manter as mesmas castas, sim. Quanto ao rosé, a nossa intenção é passá-lo a fazer com Tinta Miúda. E, para o branco, estamos a estudar a possibilidade de usar Verdelho. Há umas uvas muito interessantes em Portalegre, na Serra de São Mamede, e já andámos de olho nelas. Por isso, sim, os vinhos podem variar. E provavelmente não os lançaremos todos os anos, só quando tivermos as melhores uvas, as condições ideais para os fazer.

