Artigo

Sentir o Douro através da arte

No Douro, onde a paisagem vitivinícola de socalcos  desenha a identidade da região, os enólogos Celso Pereira e Jorge Alves, da Adega Quanta Terra, inauguram uma nova exposição em parceria com Rui Pedro, curador e proprietário da galeria Contagiarte. Para visitar estão obras de três grandes nomes do panorama artístico – Vhils, Helio Bray e Paulo Neves – que poderão ser apreciadas até ao final do ano através desta experiência de enoturismo altamente criativa.

São 27 obras de arte a coexistir com barricas de vinho, numa exposição imperdível no interior do país, numa das regiões mais bonitas de Portugal, Património Mundial da Humanidade. «O Douro é um quadro vivo, que se altera com as estações, com a luz, com o trabalho das pessoas. Sempre sentimos que havia uma história por contar através da arte», diz Celso Pereira, iniciando a conversa, e explicando a motivação por trás da iniciativa. Para os dois enólogos, a vitivinicultura é um processo que, tal como a arte, exige tempo, experiência e sensibilidade. A exposição, que decorre na adega – uma antiga destilaria da Casa do Douro  – procurou captar a essência do Douro através de obras que dialogam com a paisagem, os vinhos e a tradição local. «Não basta fazer grandes vinhos; é preciso compreender o seu contexto, a forma como se integram na cultura e na história do lugar», acrescentou o enólogo.

O projecto Quanta Terra nasceu em 1999, fruto da amizade e da cumplicidade profissional de Celso Pereira e Jorge Alves, que se conheceram e trabalharam juntos nas Caves Transmontanas. A adega, adquirida entretanto, foi recuperada pelo arquitecto Carlos Santelmo e tem, além das barricas, espaço para receber conferências, pequenos concertos e exposições artísticas temporárias. A vinificação, propriamente dita, é feita nas adegas dos seus parceiros de outros projectos vitivinícolas.

Este passo, dado em nome da democratização da arte em 2022, abriu portas para uma atividade cultural inédita no interior do país, trazendo artistas nacionais e internacionais, com diferentes níveis de reconhecimento. Iniciativas que, segundo explicam os enólogos,  «proporcionam à população fora dos grandes centros o acesso a diversas formas de arte, tornando-as mais acessíveis e aproximando a cultura das comunidades locais». Assim, a primeira exposição destacou Joana Vasconcelos, que inaugurou o espaço em 2022, seguindo-se uma exposição de Leni van Lopik em 2023, e da Galeria Underdogs, com obras de AKACorleone, Pedrita Studio, PichiAvo, Raquel Belli, Vasco Maio e Vhils. Paralelamente às exposições, a adega promoveu também dois concertos – com Kiko Pereira e Convidados (Carlos Tavares, Miguel Ângelo e João Santos), além de Miguel Mota – e conferências sobre diversos temas. O último evento, uma conferência realizada recentemente sob a temática «Enoturismo exclusivo: A procura crescente pelo Interior» contou com a presença do secretário de Estado da Cultura, Alberto Santos, e serviu de complemento à nova exposição concebida em parceria com Rui Pedro, curador e proprietário da galeria Contagiarte, que reúne três grandes nomes do panorama artístico – Vhils, Helio Bray e Paulo Neves. As obras podem ser vistas até 31 de dezembro de 2025, funcionando de quarta-feira a domingo, das 10h às 17h30, com visita guiada e prova de vinhos incluída.

Na adega estão expostas obras de arte de três grandes nomes do panorama artístico – Vhils, Helio Bray e Paulo Neves.



O espaço comemora assim os seus 25 anos, promovendo em 2025 uma nova reflexão sobre o processo criativo, unido o vinho e a arte, ao mesmo tempo que reafirma o seu papel como palco de manifestações culturais de acesso gratuito e inclusivo.

«Foi muito interessante ver a reação das pessoas. Alguns sentiram que as peças e o ambiente onde estavam inseridas os transportavam para memórias de infância relacionadas com as vinhas dos avós, e para aromas que julgavam esquecidos», sublinhou Celso Pereira, falando do impacto emocional da exposição. O enólogo reforçou ainda a importância de preservar a história do Douro através do vinho mas também deste tipo de iniciativas que valorizam o património e a identidade local. «O vinho conta uma história, tem uma narrativa própria. Esta exposição foi uma forma de dar-lhe uma voz diferente, através das cores, das formas, das texturas», concluiu Jorge Alves, seu amigo e parceiro de negócios.

A Quanta Terra trabalha em nome da democratização da arte, abrindo portas para uma atividade cultural inédita no interior do país



Para os enólogos, a aposta nunca será em iniciativas isoladas mas sim novos passos de um  projeto mais amplo de aproximação entre arte e vinho. «Estamos sempre a procurar novas formas de contar a história do Douro, de mostrar ao mundo o que torna esta região única», diz ainda Jorge Alves. «Acreditamos que através da arte conseguimos transmitir emoções e experiências que vão muito além do simples ato de beber um vinho», remata.

A exposição já está a receber visitantes, confirmando que há um crescente interesse por este tipo de projectos. «Os visitantes vêm para provar vinhos mas também para sentir a história que lhes queremos contar. E a relação entre vinho e arte é algo que queremos continuar a explorar. O Douro merece ser visto, vivido e sentido de formas diferentes», remata Celso Pereira.

ENTREVISTA



Sob a curadoria de Rui Pedro, a exposição foi organizada em parceria com a galeria portuense Contagiarte, que nasceu de um legado familiar ligado ao meio artístico. Neste projecto, o foco é tornar a arte mais acessível e disruptiva, uma simbiose entre vinhos e obras de vanguarda, proporcionando ao público uma experiência rara no interior do país.

Maria João (MJ): Como surgiu a parceria entre a Quanta Terra e a Contagiarte, considerando que a Quanta Terra já promove exposições desde 2022?
Rui Pedro (RP): A parceria surgiu de uma comunhão de interesses, já que a Quanta Terra tem vindo a apresentar exposições desde 2021, iniciadas com a Joana Vasconcelos. Quando fomos convidados, fruto de uma relação de amizade com os enólogos da Quanta Terra que já conheciam o nosso trabalho na Contagiarte, não tivemos dúvidas em aceitar. Além disso, a minha ligação pessoal com o mundo das artes, vindo de uma família de artistas (Rui Pedro é filho do Pintor Rui Alberto), ajudou a perceber a importância dessa parceria. O desafio da Quanta Terra era seguir com a arte sem desviar o foco do seu core business, que é a produção de vinhos. Eles queriam alguém que pudesse dar continuidade a esse projeto artístico sem sobrecarregar as suas operações principais.

MJ: A Contagiarte é relativamente recente, tendo em conta que é uma continuação da galeria do seu pai, mas com outro nome. Conte-me um pouco mais da sua história.
RP: A Contagiarte nasceu num momento de transição, após o meu pai, Rui Alberto, ter decidido reformar-se, após décadas no mercado de arte. Ele abandonou a gestão de galerias para se dedicar à pintura, a sua grande paixão. A Contagiarte foi criada após o início da pandemia, quando eu e a Maria João, a minha esposa, decidimos investir as nossas forças no mundo das artes. A nossa ligação ao mundo da arte vem desde a minha infância, sendo natural que, ao longo do tempo, buscássemos expandir esse legado de maneira pessoal e profissional.

MJ: Sei que tem um passado também no mundo do vinho, que trabalhou na área. Essa experiência / conhecimento ajudou-o a compreender qual seria o melhor caminho para fazer esta exposição?
RP: Sem dúvida. A minha experiência na indústria do vinho foi essencial para compreender como unir de maneira sensível e natural a arte e o vinho. Isso deu-me uma visão única sobre como esses dois mundos podem coexistir e complementar-se. A Quanta Terra, com o seu foco no vinho, queria criar algo que fosse além da produção de vinhos de qualidade e que trouxesse um valor adicional através da arte. Essa conexão foi fácil para mim pois, além de trabalhar com vinhos, eu também cresci no ambiente artístico.

MJ: A exposição atual na Quanta Terra vai até o final de Dezembro. A parceria com a Quanta Terra vai continuar no futuro?
RP: Creio que sim, este evento está a correr de forma muito positiva… A exposição trouxe três grandes nomes da arte, nacionais e internacionais, para o interior do país, e tem sido uma grande oportunidade mostrar que é possível criar projetos disruptivos e acessíveis fora dos grandes centros urbanos. A Quanta Terra já tem o histórico de promover eventos culturais além das artes plásticas, incluindo música, teatro e conferências. Portanto, temos planos de continuar a parceria e expandir o conceito, trazendo outras formas de arte e eventos culturais para o espaço. Isso pode incluir exposições de fotografia, escultura, e até performances ao vivo, sempre mantendo o foco na acessibilidade da cultura.

MJ: A exposição atual incluiu pintura e escultura. Haverá espaço para outros tipos de arte no futuro, como a fotografia, por exemplo?
RP: Sim, a fotografia é uma forma de arte que se liga perfeitamente com a pintura e escultura. Embora a exposição actual tenha sido predominantemente de pintura e escultura, as artes plásticas abrangem muito mais do que isso. A fotografia, as instalações e outras formas artísticas também são parte integral do nosso planeamento. Vamos continuar a explorar estas formas e integrar tudo no projeto, sem limitar os diferentes meios artísticos. A ideia é sempre abrir espaço para a inovação e a diversidade na arte.