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Tradição Renovada

A produção de sidra na ilha da Madeira é tão antiga como a do vinho mas tem menos destaque por ser considerada de menor interesse económico. Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades. A tradição da Sidra renasceu em grande força, ao ponto de já ter um concurso mundial dedicado exclusivamente a esta bebida.

Tudo começou há uns anos quando o padre Rui Sousa, fundador de um projecto comunitário na freguesia dos Prazeres (no Município da Calheta) decidiu, entre outras actividades, apoiar os habitantes da sua paróquia através da produção de sidra, utilizando maçãs (pêros, como lhe chamam) que sobejavam em grande quantidade. A existência de macieiras (pereiros) existe um pouco por toda a ilha, mas na maioria das vezes a fruta nem sequer é apanhada, servindo as árvores para proteger outras culturas dos ventos agrestes. Havendo um enorme desperdício de fruta, o padre não só fez o seu aproveitamento, como começou a plantar variedades quase extintas. Actualmente, a Universidade da Madeira já se encontra a classificar e estudar as variedades locais, sendo que das mais de 130 espécies já identificadas, 10 já fazem parte do Catálogo Nacional de Variedades de Espécies Frutícolas: (Maçã Barral, Maçã Cara de Dama, Pêro Calhau, Pêro Domingos, Pêro Ponta do Pargo, Pêro Bico de Melro, Pêro Branco, Pêro da Festa, Pêro Focinho de Rato e Pêro Vime). O registo neste Catálogo, reconhecido pela União Europeia, assegura a proteção e preservação de um riquíssimo património genético vegetal regional e, em paralelo, a criação de condições ao incremento da sua produção, bem como ao desenvolvimento de circuitos comerciais para as variedades tradicionais madeirenses.

Em 2006, para melhorar a sua produção, feita tradicionalmente nos antigos lagares da Quinta Pedagógica dos Prazeres, o padre pediu apoio técnico à Secretaria Regional de Agricultura e Desenvolvimento Rural, que lhe destacou e enóloga da adega do Governo Regional, Regina Pereira (na foto de entrada), para lhe prestar assistência técnica. O resultado foi positivo. Os anos foram passando e o entusiasmo foi aumentando, com outros proprietários de pomares em várias localidades da ilha a querer também produzir sidra. Um caminho que levou naturalmente Regina Pereira ao comando da Sidraria de Santo António da Serra, entretanto criada pelo Governo Regional, que hoje já dá assistência profissional a todos esses produtores.


Pêro da Ponta do Pargo, , uma das variedades mais utilizadas na produção de sidra, muito aromática e de maturação mais rápida.



Em 2022, Regina foi também uma das fundadoras do primeiro Concurso Europeu da Sidra, um evento organizado pela Secretaria Regional em parceria com a Associação Qualifica / Origin Portugal, que decorreu na Calheta. O município onde tudo começou, e uma merecida homenagem ao padre Rui que ainda hoje continua a produzir sidra e a ser uma referência local.

A primeira edição correu tão bem que despertou a curiosidade de novos produtores e, nesta segunda edição / 2023, o evento voltou a organizar-se na Calheta mas já passou de Europeu a mundial, aumentando o número de sidras em prova: 72 sidras das quais 40 são madeirenses, 4 de Portugal continental e as restantes 28 da Irlanda, Croácia, Alemanha, Espanha, República Checa, Polónia, Holanda, Bélgica, Letónia, França, Itália e Áustria. O júri é composto por 33 especialistas de 6 nacionalidades, entre os quais produtores, jornalistas, sommeliers e até académicos especializados em sidra. «O interesse pela sidra aumentou e, como tal, também aumentou o número de participantes. A complementar o concurso, ainda se organizaram outros eventos inseridos na Festa da Sidra, no Funchal, onde assistimos a conversas temáticas, demonstrações culinárias e actuações musicais. A Sidra está com a força toda!», graceja Regina Pereira, entusiasmada. Um evento que se divide por cinco dias e que tem o objectivo de apoiar a agricultura local, a restauração, o talento madeirense, e criar mais um cartaz turístico de interesse para a ilha da Madeira.


Edições limitadas, sidras de qualidade

Situada na Ponta do Pargo, na ponta oeste da ilha da Madeira, o projecto ‘Casas da Levada’ dedica-se ao agroturismo mas também à produção de sidra. Visitado pelo painel de júris após  o concurso, a encantadora propriedade encontra-se no limite da Floresta Laurissilva, constituída predominantemente por árvores e arbustos indígenas da Madeira, uma vegetação  que já existia aquando da chegada dos navegadores portugueses e é considerada uma relíquia do período Terciário. O produtor, Joaquim Abreu, tem apenas um hectare junto deste paraíso, mas nele existem árvores de Pêro da Ponta do Pargo, uma das variedades mais utilizadas na produção de sidra, muito aromática e de maturação mais rápida.

Quando Joaquim adquiriu o terreno há mais de 20 anos para usufruto familiar e exploração de agroturismo, nunca imaginou que um dia se iria dedicar à produção de sidra: «Antes, os pêros serviam para comer e fazer os doces do pequeno-almoço dos hóspedes. Só mais recentemente é que tivemos conhecimento do projecto da Sidra e falámos com a engenheira Regina para nos orientar. Desde então, lançámos a sidra, que tem sido muito apreciada», explica Joaquim que, com o apoio da sua mulher, Maria Helena, e dos seus filhos, André e Joaquim Abreu - um arquitecto e outro gestor - se empenharam no desenvolvimento do agroturismo mas também são hoje entusiastas da sidra. «o pêro da ponta do Pargo não existe no continente, é daqui, desta parte da ilha, e por isso demos o nome de ‘Endémica’ à sidra. Mas como é uma variedade muito boa, já existe um pouco por toda a ilha. O ano passado foram apanhados 360 quilos de pêros e fizeram-se cerca de 250 litros, o que deu para engarrafar mais de 700 garrafas de 33 cl. São quantidades pequenas e queremos fazer tudo com muita qualidade. E, embora não tenhamos certificação biológica, é produzida biologicamente», explica Joaquim, orgulhoso das suas árvores. A Sidra, «de aroma ligeiramente frutada e citrino, e com um paladar de fruta seca e boa acidez, revela-se limpa, saborosa e é muito gastronómica», completa Regina Pereira, que explica ainda que o objectivo «é continuar a trabalhar para que a qualidade da sidra seja cada vez mais reconhecida».  


A enóloga Regina Pereira com o produtor Joaquim Abreu
Embora não tenha certificação biológica, o pomar é tratado biologicamente



Recorde-se que a Sidra remonta aos romanos e foi em Inglaterra que a sua produção mais se desenvolveu, sendo ainda hoje um dos três maiores produtores a nível mundial. Foram, aliás,  os ingleses que introduziram muitas das variedades existentes na ilha da Madeira, e que ensinaram a arte da transformação dos pêros em sidra, bem como o hábito de consumo.

As crónicas de Gomes Eanes de Zurara (1410-1474), mostravam já a existência de pereiros na ilha, relatos que davam a conhecer as listas de mantimentos das armadas portuguesas que, a partir do início do século XVI, faziam escala para reabastecer nos vários portos da Ilha e levavam consigo o precioso ‘vinho’, termo à data utilizado para designar a sidra. Desde então, a  produção desenvolveu-se paralelamente à produção de vinho madeira, que era economicamente mais lucrativo. O ‘vinho de pêros’, saboroso mas mais modesto, ficava então para os trabalhadores agrícolas, sendo muitas vezes feito nas mesmas instalações onde era produzido o vinho madeira.

Ao sumo do pêro podem também juntar-se as pêras, que existem em alguma abundância. Em todo o caso, a extração do sumo de pêros ou pêras em comparação ao sumo de uvas é muito mais difícil. É preciso partir a fruta, dias a fio, com batidas verticais feitas com vigas de madeira dura, os malhos. E só mesmo o grande gosto que os madeirenses têm pela sidra fez com que a produção resistisse, ano após ano.


A marca de Joaquim Abreu chama-se Endémica, porque é uma variedade que só existe na ilha. O seu filho André (na foto) é arquitecto mas também um entusiasta da sidra.



Madeira, um cenário privilegiado para a produção de sidra

Localizada na região subtropical do Atlântico Norte, a ilha da Madeira tem um clima ameno e baixa amplitude térmica. Como as pomóideas (família de árvores a que as maçãs, pêras e marmelos pertencem) precisam de maiores diferenças de temperatura e algum frio, as árvores estão distribuídas pela ilha em altitudes entre os 300 e os 1000 metros. O solo, maioritariamente vulcânico, é rico em matéria orgânica e de elevada acidez. Os diversos microclimas da ilha são também responsáveis pelas diferentes maturações da fruta, dando à sidra um bom equilíbrio entre doçura e acidez, tal como acontece com o vinho Madeira, e laivos oxidativos que lhe dão um carácter único.     

O seu grau varia entre os 5 e os 7% de volume de álcool, e a sua cor vai do amarelo citrino ao amarelo palha. Já no aroma, revela notas citrinas ou de maçã verde a notas mais maduras, que lembram o marmelo. Com baixo açúcar residual, derivadas de fermentações quase completas, o seu paladar tem boa acidez, com algum tanino à mistura, dependendo da variedade de pêros utilizada. As fermentações a baixas temperaturas ajudam a manter aromas e sabores, que variam conforme o seu envelhecimento em garrafa ou barricas. Devido às suas especificidades, a Sidra da Madeira foi finalmente qualificada como IG (Indicação Geográfica) pela Comunidade Europeia, e para breve prevê-se a sua evolução para outros patamares. É a primeira Sidra IG nacional, com características muito próprias.


A sidra vencedora do Concurso, do produtor Luís Mendonça (thedrunkenpharmacist)



Sejam elas naturais, doces, aromatizadas, gaseificadas, espumantes, com baixo teor alcoólico ou sem álcool, a sidra madeirense é uma das mais vibrantes (re)descobertas dos últimos anos. Prova disso foi o resultado o Concurso Internacional de Sidras de 2023: entre a 72 sidras em prova, o prémio maior foi para um recente produtor da Madeira, Luís Mendonça (thedrunkenpharmacist) que não só ganhou o prémio da melhor sidra natural na categoria de sidras secas, mas também a distinção na categoria ‘Melhor dos Melhores’.