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Uma Adega com Pica

Apesar dos atrasos causados pela pandemia, a Azores Wine Company inaugurou finalmente a sua adega na ilha do Pico. Um sonho tornado realidade por uma tripla dinâmica, os enólogos Paulo Machado e António Maçanita e o gestor de hotelaria Filipe Rocha.

Entre Maio e Junho, a Azores Wine Company começou a receber os primeiros jornalistas na sua nova adega – incluindo quem vos escreve – que serviram de cobaias para experimentar novas colheitas, provar algumas anteriores, visitar o novo espaço e pernoitar (pouco tempo, infelizmente) nos belos quartos com vista para o mar que irão receber futuros hóspedes.   

Situada na ilha do Pico, a mais visível no que diz respeito à produção de vinho nos Açores, a adega é um projecto que começou a ser desenvolvido desde o ano de 2015. O sonho de ter uma adega onde, além de produzir vinho, se pudesse dormir, já tinha sido pensado desde 2014, data da constituição da empresa. Mas pouco tempo depois, no início de 2015, esse sonho começou a ganhar forma com o lançamento da primeira pedra da construção da adega pelas mãos da dupla de arquitectos (uma empresa portuguesa e outra inglesa) a SAMI – Arquitectos, composta por Inês Vieira da Silva e Miguel Vieira; e a DRHR,  o atelier britânico de Daniel Rosbottom e David Howarth.

Quem sabe o que ali estava antes e testemunha agora o depois, quase não acredita no esforço quase sobre humano realizado para desbravar o mato que, entretanto, durante anos, invadiu os tradicionais currais de vinhas. Quando adquiriram o terreno, compacto de vegetação, os empresários demoraram horas a atravessá-lo. Mas agora o terreno está irreconhecível. O desbravamento desse mato deixou por fim a descoberto os currais que já ali existiam anteriormente, contribuindo para uma paisagem agora ainda mais bela. Situada na costa noroeste, da vinha vê-se bem a montanha do Pico mas também, no atlântico, as ilhas de São Jorge e Faial. O mar é imenso, e as vinhas em terra pontuam de verde garrido o solo vulcânico e os seus muros de pedra negra. Um local que tem tanto de inóspito como de especial. 

No Pico, uma adega é mais do que um espaço dedicado à produção de vinho. É também um local de convívio, onde há sempre espaço para receber convidados, fazer provas e refeições, e também quartos ou camas para dormir. Esta era uma tradição a manter desde os primórdios do projecto. Assim se fez.Outro objectivo foi o edifício estar completamente inserido na paisagem. Revestido a pedra recolhida no próprio terreno, a missão foi cumprida. O edifício é uma continuidade das malhas dos currais de pedra usados para proteger as vinhas, sendo também desnivelado, com uma cota mais baixa na direção do mar para que permaneça quase invisível visto a partir da estrada. Já o formato do edifício cumpre a função dos antigos tanques das vinhas, com as coberturas naturalmente inclinadas, conseguindo recolher cerca de 1500 m3 de água por ano, que são utilizados nas vinhas. Por último, sendo quadrangular, a construção do edifício inspirou-se nos antigos conventos onde também se produzia vinho, uma referência histórica e cultural da ilha. Para relembrá-los, os arquitetos desenvolveram no interior da adega um claustro que dá acesso a todas as valências: sala de provas, área de produção e armazenamento e quartos. O investimento do projecto, que pretende mudar e fomentar a ilha do Pico como destino de enoturismo, foi de três milhões e meio de euros.


O edifício é uma continuidade das malhas dos currais de pedra usados para proteger as vinhas. É quase invisível visto da estrada
A construção do edifício inspirou-se nos antigos conventos onde também se produzia vinho, uma referência histórica e cultural da ilha
A construção da adega foi projecrada pela dupla de arquitectos SAMI – Arquitectos e a DRHR.
Quarto com vista para os currais e para o Atlântico. Um sonho de paisagem.



Dotada de espaços amplos e de linhas sóbrias, a  adega é composta por uma receção com sala de provas, três salas de barricas, zona industrial, um espaço de eventos/gastronómico, cinco quartos, todos com vista mar, e um apartamento T2. Não pretendendo ser um hotel, a Azores Wine Copany é um local especial onde os enófilos podem pernoitar como se estivessem em casa dos amigos, usufruindo de uma experiência gastronómica e vínica inesquecíveis. Assim vale a pena ser cobaia.

Um projecto com alma

Durante o tempo passado na adega, e nas vinhas que pertencem à Azores Wine Company, é difícil não nos deixarmos contagiar pelo entusiasmo de Paulo, António e Filipe (na foto de entrada). Paulo Machado (à direita, na foto) nasceu no Faial mas assume-se como picaroto. Ali cresceu rodeado de vinhas e, melhor que ninguém, conhece, sente e compreende aquele terroir tão singular. Antes de se aventurar nesta sociedade, também ele foi, e ainda é, produtor dos vinhos Insula, que ombreiam na adega com os vinhos da Azores Wine Company em alegre harmonia. António Maçanita (no meio, na foto) também é homem da enologia, cada vez mais apaixonado pelo terroir da ilha e pelos estudos das castas a que se tem dedicado nos últimos anos no Açores. Por último, Filipe Rocha (à esquerda, na foto), durante muitos anos director da Escola de Hotelaria de São Miguel, é o responsável da parte hoteleira. No entanto, todos fazem e fizeram de tudo um pouco para arrancar com um projecto onde todos os pormenores contam.  

Em dois dias que passaram a correr, fizeram-se inúmeras provas da casta Arinto dos Açores, Verdelho e Terrantez do Pico. Copos e mais copos de vinho desfilaram nas mesas para serem provados, de diferentes castas, idades, zonas e exposições diferenciadas, e também diversos tipos de vinificações. Um exercício altamente didáctico, tão necessário a quem se quer aprofundar na compreensão destes vinhos tão originais, frescos e salinos.

Para que se perceba a raridade destes vinhos convém relembrar que uma vinha no Pico tem produções muito baixas quando comparadas com qualquer outra região do mundo. A sua produtividade varia entre 1000 e 2000 quilos por hectare, cerca de um décimo de uma região como Champanhe e metade de um terço de uma região como a Borgonha. Junta-se o facto de ter uma das viticulturas mais exigentes do planeta, quer pela condução da vinha junto ao chão, quer pela impossibilidade de mecanizar a vindima, sendo as uvas apanhadas manualmente. Não é por isso de estranhar que as suas produções sejam tão limitadas e caras para o bolso português.


Provas: vinhos que se destacam

Se até agora o vinho da Azores Wine Company Vinha Centenária era um dos que mais se destacava da gama de vinho da empresa, o novo ‘Vinha dos Utras’ vem agora assinalar um novo marco. O Vinha dos Utras 2019 nasce de uma vinha com cepas entre os 60 e os 80 anos,  adquirida em 2018,  que iniciou o seu processo de conversão para biológico. Segundo os antigos, «as melhores vinhas dos Açores são aquelas onde se ouve o cantar do caranguejo», ou seja, trata-se de uma vinha que está na linha da frente, junto ao mar, a uma cota inferior a 10 metros. Tão próxima, que em 2019, na tempestade Lorenzo, se perderam 30 metros de vinha e muros. Esta vinha recebe mais horas de sol do que as restantes, traduzindo-se numa maior concentração e numa forte marca de presença marítima. O nome do vinho vem do primeiro povoador e Capitão Donatário das ilhas do Faial e do Pico, Jos van Hurtere (que na forma aportuguesada era chamado de ‘Jos de Utra’) cuja família foi crucial no povoamento destas ilhas e no desenvolvimento da vinha e do vinho.


Vinhas protegidas dos ventos e da maresia pelos currais
Vinha dos Utras
Os enólogos António Machado (à esquerda) e António Maçanita, na vinha
Provas de vinhos, infindável...
Os vinhos em destaque


Outro vinho de se tirar o chapéu é o Terrantez do Pico, um vinho bonito, vibrante, fresco e salino. Há muitos anos que António Maçanita fala desta casta, que desde há 10 anos dá origem a este vinho, muito antes da adega ser construída. Filho de pai açoriano, António há mais de uma década que se dedica a um campo de experimentação desta casta quase extinta. Sabendo do seu grande potencial, desafiou na época os Serviços de Desenvolvimento Agrário de São Miguel a produzir um vinho da casta Terrantez do Pico em troca de poder comercializar 80% da produção. O primeiro Terrantez do Pico, produzido em 2010, numa adega com menos de 50 m2, deu logo um bom resultado. O suficiente para mais tarde se aliar a Filipe Rocha e Paulo Machado e fundar a Azores Wine Company em 2014, de forma a continuar um trabalho focado na recuperação de castas autóctones e na melhoria da qualidade e do estudo do terroir das vinhas açorianas. Assim, longe vão os tempos em que a casta Terrantez do Pico esteve em vias de extinção: se já esteve reduzida a menos de 100 plantas, hoje existem mais de 70.000 videiras desta casta autóctone, um regresso em força e uma grande vitória para a vitivinicultura dos Açores.

No meio de tanto copo que foi rodando nas mesas, entre provas planeadas e outras inesperadas (incluindo algumas provas directamente de barricas), ainda houve oportunidade para provar os novos vinhos Vinha Centenária 2019 e Canada do Monte 2018 que, tal como o Vinha dos Utras, são elaborados com uvas provenientes de vinhas da zona da Criação Velha – o último núcleo das vinhas velhas do Pico.

Todos estes vinhos brancos de castas autóctones distintas, acabam por se destacar em prova por diferentes motivos, mas há sempre algumas características transversais nestas colheitas, das mais simples às mais elaboradas, que tornam os vinhos açorianos tão especiais. Acima de tudo, a sua salinidade, conjugadas por uma excelente acidez, elegância e um grande equilíbrio. Além, claro, da sua enorme originalidade. Aqueles vinhos que temos de provar pelo menos uma vez na vida.