Vinhos com Garra
Depois de décadas a envelhecer na adega, os lançamentos das novas Colheitas e Frasqueiras são sempre um momento de orgulho e entusiasmo para a Madeira Wine Company, que recentemente as deu a provar a um grupo restrito de jornalistas da especialidade. Durante o evento, foram ainda provados os vinhos de mesa do produtor. Um momento perfeito que culminou com uma elegante refeição no restaurante Kabuki, em Lisboa.
Quem vos escreve esteve há pouco tempo na Madeira em várias missões, entre as quais provar as novas colheitas e frasqueiras de quatro marcas produzidas pela Madeira Wine Company (MWC) com Francisco Albuquerque (na foto), um dos mais reconhecidos enólogos do país. Mais recentemente, Albuquerque esteve em Lisboa acompanhado da sua equipa, incluindo Chris Blandy (CEO da MWC), e ainda de Rui Reguinga (enólogo consultor nos vinhos de mesa) para dar a provar estas mesmas referências, posteriormente acompanhadas de elegantes pratos de comida asiática. Tanto da primeira como da segunda vez, registei algumas notas sobre os vinhos que mais me surpreenderam, o que resultou numa repetição de sensações, já que as conclusões foram as mesmas, apesar do complemento gastronómico. Este é um exercício interessante que nos permite ver que, apesar de poderem evidenciar-se ainda mais em determinado contexto, quando a qualidade do produto é excelente, acaba sempre por sobressair (além de nos permitir sempre colocar o paladar à prova). Mas adiante.
Este lançamento de colheitas e frasqueiras dá-se após um lento envelhecimento que proporcionou aos vinhos características refletidas na sua qualidade e equilíbrio. A apresentação incluiu o lançamento de 12 novos vinhos (9 vinhos Madeira e 3 vinhos de mesa), de diferentes marcas. Foram eles os Malvasia, Bual, Verdelho e Sercial (todos da colheita de 2010), e os Frasqueiras Sercial (1990), Verdelho (1982) e Bual (1976), da Blandy’s. Por último, o Malvasia (1991), da Cossart Gordon. Mas antes dos generosos, foram apresentedos os vinhos de mesa: o Atlantis Rosé (2022), Branco (2022) e o Branco Reserva (2020), sendo que ainda vieram para a mesa as colheitas anteriores de 2018 e 2019 do Reserva, para perceber como o projecto evoluiu ao longo dos últimos anos. Por último o Atlantis tinto (2021), que complementa a gama.
Começando pelos mais improváveis, os da marca Atlantis, é sempre interessante a qualidade obtida em vinhos que só mais recentemente começaram a ser produzidos na ilha. Percebendo também o potencial que a Madeira teria para produzir vinhos de mesa, a Madeira Wine Company iniciou experiências que contribuíram para a percepção do que poderia vir a ser a marca Atlantis, a primeira a ser produzida e engarrafada na ilha da Madeira. Hoje é um projeto vencedor, que reflete a visão e o pioneirismo do produtor, mesmo quando a opinião geral na época era a de que as condições naturais da Ilha não permitiam a produção de vinhos de mesa de qualidade. O nome é inspirado na ilha Atlântida onde, segundo a lenda, vivia um povo sábio e civilizado, inserido numa paisagem de exuberante de vegetação com templos de rara beleza. Um designativo que representa também a frescura do Atlântico e a beleza da Ilha onde o vinho é produzido.
A primeira colheita da marca Atlantis foi a de rosé, em 2002. Hoje, é dos vinhos de mesa mais apreciados, um rosé leve (tem 10,5% álcool) de cor salmonada, elaborado com a casta Tinta Negra, com laivos de fruta vermelha no aroma e um paladar fresco, salino e mineral. Começou por encher menos de 3.000 garrafas mas agora já chega às 60.000. É sinal que o mercado gosta, pede mais e, ainda assim, é um vinho que esgota, segundo revela o enólogo.
Já os brancos surgiram a seguir, elaborados com Verdelho, a casta branca mais produzida na ilha. O Atlantis branco tem um aroma vegetal, herbáceo, complementado com uma leve fruta branca e notas ligeiras de pêssego alperce. No paladar é sério, seco, com excelente acidez, complementado por notas minerais e pela salinidade que é tão característica da ilha. O Atlantis Reserva, que surgiu pela primeira vez em 2017, acaba por ter as características do colheita, mas com um aroma e paladar mais vincado, com uma estrutura mais profunda, já que apesar de ter sido vinificado da mesma forma, diferencia-se pelo estagio de 19 meses em carvalho francês de 500 litros, e ainda outros 19 em garrafa. Na ápoca, quando foi lançado, o vinho tinha um perfil mais amadeirado, característica que foi perdendo ao longo dos anos ao seguir as actuais tendências de mercado. Tal como o rosé, os brancos Atlantis não costumam ultrapassar os 12 graus de álcool, mas são produzidos em menor quantidade (no caso do branco reserva as garrafas são numeradas e nunca ultrapassam as 30.000).
Por último, o Atlantis tinto, de Tinta Negra, que mantem a leveza alcoólica, a salinidade da ilha, mas pelo seu estilo tem um aroma mais intenso, a frutos vermelhos com notas vegetais e de especiaria, e um paladar que complementa fruta e acidez.
O maravilhoso vinho Madeira
O peso histórico do vinho Madeira é um facto, pois a ilha reúne condições únicas para a produção do mesmo desde o século XV. E a Madeira Wine Company faz parte dos produtores mais antigos. Originalmente fundada em 1913, associou várias empresas produtoras de vinho que uniram forças para reforçar as suas capacidades de compra e vinificação. À associação aderiram as antigas empresas familiares Blandy's e Leacock, seguindo-se imediatamente ao pós-guerra a Miles e Cossart Gordon, criando-se assim o maior produtor e exportador de vinho Madeira.
Os vinhos provados fazem maioritariamente parte da Blandy’s (fundada em 1808 pelo inglês John Blandy), mas a Madeira Wine Company também detém a marca mais antiga de vinho Madeira, a Cossart Gordon (criada em 1745). São por isso duas marcas emblemáticas e obrigatórias para os apreciadores de vinho.
Relembrando o que foi dito anteriormente, os vinhos provados foram os colheita Malvasia, Bual, Verdelho e Sercial (todos de 2010), e os Frasqueiras Sercial 1990, Verdelho 1982 e Bual 1976, da chancela Blandy’s Gordon; e o Malvasia 1991, da Cossart Gordon. Neste conjunto de vinhos, todos eles de enorme qualidade, existem no entanto algumas curiosidades e características que os diferenciam.
Começando pelos colheita, esta foi a primeira vez que a Blandy’s lançou quatro vinhos do mesmo ano (2010) porque, segundo o enólogo, reuniram-se condições ideais para tal. O Sercial foi o que apresentou maior acidez. Proveniente do Seixal, na costa norte da ilha, é um vinho seco, com imensa frescura e personalidade. Já o Verdelho, de estilo meio seco, proveniente das vinhas de Porto Moniz (também na costa norte da ilha), mostrou a sua garra equilibrando melhor a acidez e a doçura do vinho, num corpo bonito e estruturado. Esta casta nobre é muito completa, mas ao longo dos séculos foi perdendo algum protagonismo. Recorde-se que no século XIX, 75% do encepamento da ilha era de Verdelho, perdendo o seu lugar para a Negra Mole que a partir do século XX, no período pós-filoxera, começou a expandir-se rapidamente tornando-se a casta (tinta) mais cultivada da ilha. Hoje, a Verdelho segue o seu caminho de nobre casta, ganhando um novo protagonismo especialmente no que diz respeito aos vinhos de mesa.
Continuando a prova, o Bual meio doce, produzido com uvas da Calheta, na costa sul da ilha, evidenciou-se pela suas bonitas notas oxidativas e boa estrutura num conjunto harmonioso, limpo e limado. E, por último, o Malvasia, um vinho doce elaborado com uvas de São Jorge, na Costa Norte, revelador de uma doçura mais marcante do que os demais, mas detentor de uma excelente acidez, tudo isto ‘embrulhado’ numa boa estrutura.
Por último, os Frasqueiras, que mantiveram as características de cada casta, embora com aromas mais terciários (de envelhecimento) mais evidentes. O Sercial 1990 tem uma acidez impressionante, mas a casta Verdelho voltou a brilhar, com o ano 1982 a sobressair em equilíbrio entre doçura, acidez complementada com notas de especiaria e uma estrutura marcante. O Bual 1976 também impressionou pelo nervo e juventude do vinho, que supostamente já não teria passados tantos anos. E o Malvasia 1991, tal a mostrar uma acidez que não se espera naquela que é a casta mais doce da ilha.
Para terminar, é de salientar que a nobreza destes vinhos, aliada às excelentes harmonizações e ao serviço de mesa e vinhos do restaurante Kabuki fez desta uma das melhores provas deste ano.